Dias atrás trouxe para a cena uma obra de Petrarca – Secretum – em que o poeta trava um diálogo erudito com Santo Agostinho. É evidente que Petrarca tinha conhecimento da obra intitulada Confissões, escrita por Agostinho, que viveu no século IV, entre os anos de 354 e 430. Ele nasceu no norte da África, onde é hoje a Argélia, e estudou em Cartago, onde foi depois professor de gramática e de filosofia.
Sua obra até hoje continua sendo surpreendente. Ele a divide em 13 livros, ou capítulos. No primeiro, de que vai aqui uma amostra, em tradução livre e coloquial, ele rememora sua vida “Do nascimento até os quinze anos”.
Quem poderá me lembrar os pecados cometidos na infância? Porque ninguém está imune do pecado, nem mesmo o recém-nascido com um dia de vida. Qual era então o meu pecado. Talvez o de buscar com avidez, aos berros, os seios de minha mãe. Se eu mostrasse hoje a minha avidez, não mais pelo seio materno, é claro, mas pelos alimentos da pessoa adulta, eu seria com certeza censurado.
Quando menino, fui enviado à escola para aprender as primeiras letras. Eu não entendia a importância disso mas, se me mostrasse preguiçoso, era castigado com vara. (...). Os adultos, e até mesmo meus pais, que me queriam bem, riam dos açoites, o que tornava ainda maior o meu sofrimento.
No entanto, nós, estudantes, continuávamos a cometer faltas, escrevendo, lendo e estudando menos do que se exigia de nós. Não que nos faltasse memória ou inteligência. O fato é que gostávamos de nos divertir, se houvesse um juiz, ele aprovaria os castigos que nos davam, porque eu jogava bola, e isso atrapalhava o aproveitamento nos estudos. Mais tarde, se eu fosse vencido por um colega de magistério numa discussão fútil, me roía de raiva, mais do que quando era derrotado por um companheiro num jogo de bola.
Na verdade eu pecava, ao agir contra as normas de meus pais e meus mestres. E eu desobedecia não para fazer coisa melhor, mas por amor ao jogo, porque gostava de sentir o orgulho da vitória nas disputas. Gostava também de assistir à representação de histórias frívolas no teatro; eram espetáculos que deleitavam os ouvidos e faziam brilhar os olhos. Mas os pais gostam de ver os filhos tendo prestígio nos jogos e até, mais tarde, a participar de espetáculos teatrais. Olha, Senhor, com misericórdia para essas contradições.
Até hoje não sei explicar bem a causa de minha relutância em estudar grego. Que me obrigavam a aprender desde criança. Eu gostava muito do latim, não daquele ensinado nas primeiras classes, mas do ensinado na gramática.
Mas na realidade aqueles primeiros estudos me permitiam, e permitem até hoje, ler qualquer escrito e também escrever o que desejo. Se eu perguntar com que letras se escreve o nome de Enéias, todos os que estudaram, vão dar a resposta exata, seguindo as normas do alfabeto. Eu pecava quando criança porque preferia as ficções poéticas: um mais um, dois; dois mais dois, quatro; era para mim uma cantilena chata. E ficava encantado com a história de um cavalo de madeira cheio de guerreiros e do incêndio de Troia.
Não é de estranhar que eu tenha me afastado de ti, meu Deus, levado por coisas vãs, pois eu tinha como modelo somente mestres que se sentiam aflitos quando cometiam algum erro de gramática ao expor boas ações, e que exultavam narrando em pormenores os seus desmandos...
No segundo livro, Agostinho relembra os seus “dezesseis anos”. A ele se segue o do “jovem estudante” e depois o do “professor”. No quinto livro narra o que muda em sua vida, indo “Da África para a Itália”. Ler suas Confissões é fazer uma viagem no tempo e nas profundezas da psique humana.
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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