Talvez pelo fato de sermos ainda criaturas com tão pouco passado é que nos parecessem sempre tão longas as tardes que nos esperavam nos dias da infância. Elas começavam logo depois do almoço, quando os raios do sol de inverno aqueciam minimamente a grama do jardim, para o qual olhávamos com a avidez de quem planeja horas intermináveis de prazeres lúdicos em um paraíso reservado às tarefas pueris da criancice.
Uma bergamota descascada a unha espargia seu odor adocicado no ar ao entorno e preparava a atmosfera típica que se completava com o ruído de pneus de um automóvel solitário rodando sobre os paralelepípedos irregulares da rua calçada defronte à casa suburbana. Algum adulto da vizinhança se dirigia ao trabalho enquanto nós, agora devidamente desincumbidos da presença matinal às aulas no colégio, as tarefas de casa já todas vencidas com pressa nos cadernos arremessados a uma pilha sobre a escrivaninha do quarto, podíamos, enfim, nos dedicar aos assuntos evocados e exigidos por mais uma longa e ensolarada tarde de inverno: inventar brincadeiras sem fim capazes de preencher aquele imensurável hiato de tempo composto pelo sobrepor dos minutos infinitos que teceriam as melhores horas de nossas vidas.
O sol, mesmo que tímido, como costuma ser seu temperamento nos meses invernais do meio do ano, atuava como um generoso anfitrião, ávido por testemunhar nossas cabecinhas serelepeando ao ar livre, desentocadas das paredes internas das casas, a gastar energias escalando as árvores do pátio, travando guerras de laranjas contra os vizinhos das casas do outro lado da rua, catando as nozes pecãs ofertadas ao solo pelo par de velhas nogueiras, embarrando as congas (“tênis” seria uma elegantização adotada anos mais tarde) no lodo acumulado no meio-fio da Rua dos Viajantes, queimando os dedos desatinados no toque impensado em um mandruvá camuflado entre as folhas da roseira, perseguindo o rastro das tanajuras para desvendar o esconderijo do ninho do formigueiro e depois inundá-lo impiedosamente com a água fervida na chaleira de alumínio no fogão da cozinha, correr desabaladamente para dentro de casa sob o sol das quatro da tarde para preparar o lanche tradicionalmente composto por um alto copo de achocolatado a acompanhar um sanduíche de pão de forma preenchido com margarina e queijo e mortadela e mais um pacote de bolachas recheadas para, então, saciada a fome do corpo, retornarmos ao pátio e seguir empanturrando de atividades a insaciável sanha de sermos crianças.
Não tínhamos, então, a noção científica, depois obtida pela vivência e pelo acumular de invernos, de que, naquela estação do ano, os dias eram mais curtos e o sol se despedia da fração definida como “tarde” mais cedo, ainda antes de o relógio anunciar a chegada das seis. Quando nos dávamos por conta, o azul do céu já se via invadido pelo alaranjado dos raios solares do ocaso, quando nosso amigo sol se punha a se esconder na descontinuada linha do horizonte desenhado pelas copas de árvores longínquas, acenando um adeus mudo e envelopado na esperança de renovar o encontro no dia seguinte. Os paralelepípedos da rua voltavam a estremecer sob o rodar dos pneus do automóvel do vizinho, que retornava ao lar após mais um dia de trabalho, fechando outro ciclo.
Éramos então abraçados pela noite, que ressaltava o frio do inverno e nos induzia a todos de volta ao acolhimento do calor de nossas casas, cenário que abrigaria, sem que então percebêssemos, o processo de depositarmos, nos recônditos de nossas almas, as lembranças daqueles atos infantis desenvolvidos nas tardes mais longas de nossas vidas, que passariam a servir de lastro de calor e acolhimento psíquico sempre que nostalgicamente evocadas ao longo de toda a nossa futuramente longuíssima adultice, na qual as tardes passariam a ser engolidas pelo trotar acelerado das horas e do dirigir pneus de ida e volta na construção de nossas biografias.
Felizmente, nunca é tarde para frear um pouco o avanço do relógio e retomar o contato, mesmo que fugaz, com o sabor daquelas bergamotas, sempre que o sol de inverno dá aquela espiadinha saudosa ali fora...
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