POR: Eulália Isabel Coelho (Biba)
Viver no isolamento obrigatório não é fácil para ninguém, nem mesmo para aqueles “um tanto quanto” antissociais. Cada um busca, à sua maneira, lidar com a situação. Fazer um bolo, ouvir música, cantar, dançar. Ler, interagir nas redes sociais, tricotar, mudar os móveis de lugar, ajeitar a bagunça já esquecida (dentro e fora da gente), tomar um vinho, ligar para alguém, brincar com os filhos, contar histórias, inventá-las. E, claro, assistir séries e filmes.
O cinema, como outras artes, nos permite reflexão e divertimento. Um olhar sobre o outro que muitas vezes nos escapa. Escolhi uma história encorajadora, com nuances cômicas, para indicar a vocês. Por ser o que chamamos de “feel-good movie” (filme que faz você se sentir bem), “Um homem chamado Ove” (Suécia, 2015) é legal nesse momento em que carecemos de mais afeição e solidariedade.
Começo dizendo que as lembranças nos aproximam de um estado no qual o tempo fica em suspenso. Dizia Mario Quintana que “a saudade é o que faz as coisas pararem no tempo”. As recordações se parecem com pinceladas em uma tela já pintada, mas que precisa de retoques, aqui e ali. Talvez por isso, voltemos a elas. Muitas vezes, sem querer; muitas vezes por escolha.
Recordar nos “devolve” o já-vivido, nos realoca no tempo e nos faz perceber que a velocidade da vida pode ser, senão freada, atenuada. Como agora, em que ficar em casa é prudente e nos envolve em um ritmo mais lento. Sabemos que rememorar pode até doer, mas o resgate coração/alma, na escuta do passado, desacelera a angústia e, por fim, conforta. É enfrentamento necessário.
É dessa forma que percebo o que se passa com o marcante personagem de “Um Homem chamado Ove”. Os temas memória e perdas costuram o enredo do filme, roteirizado e dirigido por Hannes Holm. Inspirado no best-seller homônimo do escritor Frederick Backman, a obra concorreu ao Oscar nas categorias Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Maquiagem. E, em pouco tempo, tornou-se o filme mais assistido na Suécia.
É no arco dramático de Ove (Rolf Lassgard) que entendemos o quanto de nós fica no passado e o tanto que esse “lugar” pode afetar as decisões do presente. Ao ser demitido depois de trabalhar 43 anos em uma mesma empresa, Ove decide juntar-se à falecida esposa, Sonja (Ida Engvoll). O único propósito definido agora é esse. Ainda assim, ele mantém sua rotina. É entre uma coisa e outra que tenta tirar a vida.
O ator sueco Rolf Lassgård , no papel de Ove (Direitos autorais da foto: www.johanbergmark.com)
As tentativas, sempre frustradas por intervenções alheias não intencionais, sinaliza que, de algum modo, Ove continua conectado à vida. Depende dela e tem muito a aprender e a ensinar sobre ela. Somos imediatamente tocados pelo drama desse homem solitário, implicante e obsessivo, cujo rígido ritual diário é inspecionar o condomínio de casas em que mora. O dia para Ove só começa depois de sua ronda conferindo as garagens, recolhendo bitucas de cigarro, hostilizando algum vizinho.
Não sem sofrimento, Ove saberá que estar vivo pode surpreender, transformar e, até mesmo, aquietar. Se a ideia de suicídio nos parece radical, no caso de Ove significa a simples necessidade de evadir-se. O possível reencontro com Sonja, figura geradora de calma e bem-estar, é o que, contraditoriamente, o faz seguir. Vemos em flashback a trajetória de sua vida conturbada e como sua relação com Sonja o torna menos impertinente. A lembrança dela é a da mágica entrega ao amor. É o mundo com mais cor e vivacidade.
Ove é um homem comum, cuja bondade destoa de sua tremenda rabugice. E é aí que o espectador cria empatia com o personagem. Queremos demovê-lo, abraçá-lo, como se fosse alguém familiar. Dizer-lhe que vale a pena ir em frente, que os acasos que impedem seu ato final, são avisos de que há algo a experimentar. Sorrir novamente, ser cordial, ajudar o outro, acariciar o gato...
Ove aprenderá que o convívio com quem é tão diferente dele pode vir carregado de magia também. São os novos vizinhos, bem atrapalhados, que o tirarão do sério, os responsáveis por pequenas mudanças e novos desafios. Mesmo que resista inicialmente à amizade da imigrante iraniana Pavaneh (Bahar Pars), pouco a pouco seu isolamento social ficará para trás. Ela é o contraponto a Ove, com sua energia e disposição. Há uma frase dela que nos lembra da importância do coletivo: “Ninguém pode fazer tudo sozinho. Nem mesmo você, Ove.”
Esse é daqueles filmes que a gente guarda como um encontro inesperado, bonito e envolvente.
Eulália Isabel Coelho (Biba) é jornalista, escritora e artesã
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