Em 60 dias de quarentena, sim, grandes mudanças, muitos dilemas, mas a vida seguiu e aprendemos muito. As crianças, surpreendentemente, aprenderam muito e nos ensinaram também, conhecemos muito mais nossos vizinhos, trocamos comida, bate-papos no “front e Back porch” (sacada na frente e nos fundos da casa), enfim, a vida mudou muito, aulas de todos online, e aprendendo bastante!! Conhecendo cada vez mais a realidade local, suas belezas e amarguras.
Agora, estamos saindo da pior fase, com as mortes diárias baixando semanalmente, praticamente zerando aqui na cidade, ou seja, finalmente nos afastando de um vírus que mata principalmente por sufocamento. Estamos prestes a voltar a algo próximo ao que tínhamos ou o “novo normal”, com o comércio dando sinais de abertura, restaurantes voltando a atender presencialmente e as escolas e universidades se organizando para o próximo ano letivo.
Eis que deparamos com o quê? Outro grande vírus, o racismo, este, muito mais perigoso e difícil de eliminar, uma questão séria, triste, que desde nossa chegada nos chamou a atenção: um povo sofrido, os afro-americanos, que aqui na cidade são 80% da população. Por mais que participem ativamente em todos os setores da sociedade, apresentam-se, muitas vezes, na defensiva. O clima é tenso, possível de se sentir no dia a dia.
Então, quando estávamos nos livrando da Covid-19, vírus que mata por sufocamento, acontece um assassinato brutal, de um afro-americano, George Floyd. Por sufocamento, sim, oito minutos, por policiais que não atenderam aos seus pedidos, suas súplicas... ”Please, I Can’tBreathe”! “Por favor eu não consigo respirar”! A brutalidade da cena é forte, o vídeo está disponível e não deixa dúvidas quanto à violência. Isso levou a uma situação de revolta há tempos não vivida por aqui!
A motivação da detenção dele, aparentemente, foi um problema em uma loja, onde Floyd teria pago suas compras com uma nota falsa, sem saber.
As rebeliões são marcantes na história de Detroit, deixaram cicatrizes profundas no passado. Mas nunca foram minimizadas, sempre tratadas com muita seriedade, até porque, foram muito importantes para as diretrizes dos direitos humanos no século XX, aqui nos EUA e no mundo. Isso pode ser notado no Museu da História de Detroit, que dedica uma ala inteira somente para a rebelião de 1967.
Isso faz a diferença, explica muito os atos que estão acontecendo por todo o país. É uma revolta acumulada, por dias de preconceito e racismo estrutural, e que é explicitada principalmente na relação com a polícia.
As consequências dessas passeatas, ninguém sabe, mas já estão ocorrendo reuniões entre vários setores da sociedade, principalmente com as minorias. Isso foi feito também em 1967, após a rebelião: a sociedade civil se organizou e apresentou demandas, mudando a composição de órgãos municipais, entidades sociais trazendo a participação dos afro-americanos, muito mais presentes e ativos nas tomadas de decisões.
Algumas ações já estão sendo tomadas. Uma delas, simbólica, é que a Wayne State Univerity, que tem como reitor um afro-americano, Dr. M. Roy Wilson, irá fornecer um modelo de treinamento policial diferenciado nas instalações da universidade para alterar a forma de abordagem.
Talvez esse histórico de ruptura e desgaste no passado, aqui em Detroit, tenha sido o diferencial para manter certa ordem nos protestos. A cidade hoje tem sido uma das poucas sem eventos de violência extrema, sem vandalismos, pois conhecem bem essa situação. Em 1967, a rebelião durou cinco dias, com incêndios, saques, e necessitou de uma intervenção do exército, resultando em 43 mortes.
Por tratar-se de um tema delicado e muito importante, procurei dialogar com quem realmente conhece, estuda e entende do assunto. Conversando com o amigo brasileiro, o colega, professor Dr. em História pela UFSM, João Heitor Silva Macedo, um grande ativista nas causas raciais, ele comentou que, talvez, a grande diferença entre Brasil e EUA seja, segundo ele, que “nos Estados Unidos, as tensões sociais do pós-abolição são recheadas de uma violência exacerbada desde o início e têm em sua história local a justificativa, algo diferente do que temos no Brasil, onde o pós-abolição foi um acordo de elites, que criam uma anistia branca que sepulta os problemas raciais em 13 de maio de 1888 e os cobre com um discurso de estado e uma suposta democracia racial”.
Também buscando explicações dessas revoltas, ele afirma que, “diferentemente dos EUA, no Brasil negou-se a história de herança africana, silenciaram as narrativas daqueles que foram escravizados e de seus descendentes, criando um discurso mestre de uma nação europeizada sem problemas raciais. No entanto, esse discurso naturalizado e sedimentado no estado forjou, ao longo da República, uma estrutura rígida de silenciamento e negação das vozes subalternas de negras e negros”.
Enfim, aqui nos Estados Unidos, essas cicatrizes nunca foram curadas. O que não é ruim, pois talvez seja por isso que, hoje, sabem muito bem o que significa toda essa mobilização. Todos têm consciência das motivações, sendo que a grande maioria é contra o vandalismo.
Então, nos resta ter otimismo e esperar que tudo isso que está acontecendo neste estranho ano de 2020, realmente atípico, nos permita refletir e voltar a respirar livremente novos ares no mundo todo sem nenhum tipo de sufocamento.
Rafael de Lucena Perini já atuou como empreendedor no setor de chocolates em Caxias do Sul por 10 anos. Bolsista no Doutorado em Administração de Empresas na Universidade de Caxias do Sul (UCS) e professor licenciado do Centro Universitário da Serra Gaúcha (FSG), atualmente é pesquisador visitante da Wayne State University, em Detroit. Dedica sua pesquisa a temas relacionados ao desenvolvimento nas cidades.
e-mail:perini.usa@gmail.com
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