Continuando a leitura do caderno de memórias de Francisco Paglioli, depositado no Instituto Histórico do Rio Grande do Sul, mais fatos do passado ganham vida. Como neste episódio em que ele narra sua experiência como negociante.
Quando o engenheiro José Montaury de Aguiar Leitão – o nome é registrado assim, por inteiro – chegou a Caxias em 20 de abril de 1891 para ser chefe da colônia, a banda regida por Paglioli, que então tinha vinte e quatro anos, foi recebê-lo.
Terminada a cerimônia, o doutor Montaury, “muito delicado, convidou-me para dentro de casa, oferecendo licores. Sentou-se perto de mim e quis saber qual o meu meio de vida; contei-lhe tudo pormenorizadamente”, registra à página 10 do caderno.
Na época, Paglioli trabalhava como sapateiro, um pouco como ajudante de um ferreiro, seu vizinho de casa, e como regente da banda. Estava há pouco tempo casado com Giacomina, morando na Quadra 25, lote nº 5, que seu pai recebera ao chegar ao Campo dos Bugres. De acordo com João Spadari Adami, que reconstituiu a história de Caxias em seus inícios, era uma quadra de 110 por 88 metros, e estava situado atrás da catedral, onde hoje é a rua Dezoito do Forte.
Ao perceber como o jovem maestro vivia em aperto, Montaury fez a ele uma proposta:
- Quer vir em Alfredo Chaves? – disse-me ele. – Eu lhe darei casa para morar e um emprego, e o senhor organizará uma banda de música.
No dia seguinte contei a meu cunhado a tal proposta do doutor engenheiro.
- Não acho bom negócio – disse-me ele, - emprego público hoje tens e amanhã podes estar na rua
- Mas eu não posso continuar assim, pouco serviço, e a família está aumentando – disse-lhe eu.
- Tu tens uma casa em bom ponto, vamos abrir um negócio, eu entro com o capital e tu trabalhas. No fim do ano fazemos o balanço e repartiremos o lucro: o (vendido) a fiado fica na tua conta.
Mesmo com uma proposta assim desproporcional, Paglioli aceitou... No balanço de final de ano, só o cunhado ficava com dinheiro, sobrando para ele, Paglioli, o trabalho de montar a cavalo e ir cobrar dos que haviam comprado a fiado. E de conviver com as más línguas.
Um dia ele perguntou à esposa, Giacomina, por que ela estava sempre triste. Ela respondeu:
- Porque contaram que tu és maçônico.
- Eu não sou maçônico – respondeu ele –, quer creias, quer não. E, enquanto viver, nunca darei tal desgosto.
Aí rebenta a revolução de 93 (1893) e os maragatos invadem Caxias, saqueando casas de negócio e tudo o mais. O relato de Francisco Paglioli é insubstituível:
Saquearam muito mas eu não sofri, pois todos me queriam bem, tanto os maragatos como os pica-paus (republicanos).
[...] Os pica-paus entrincheiraram-se na casa do meu cunhado, por ser um ponto estratégico, de forma que os maragatos ficaram com ódio dele. E depois da retirada dos mesmos, mandaram dizer que se soubessem que a mercadoria que eu tinha era dele, nem as prateleiras teriam ficado.
Quando soube disso, o cunhado decidiu que deviam acabar com a sociedade, assinando um documento, descrito em detalhes no caderno de memórias, em que as dívidas ficavam todas com Paglioli, que conclui:
Fui sempre de mal a pior, eu não tinha queda para negócio, e fiava a torto e direito, até que tive de liquidar. Lancei mão de umas terras de meu pai, entreguei-as ao credor (o cunhado), deixando ele fazer preço à vontade, e ele me cobrou juro sobre juro.
Dez anos depois, em 1903, já com sete filhos, entre eles Eliseu, que seria reitor da Ufrgs, foi convidado para organizar uma banda de música em São Francisco de Paula, município recém-emancipado de Taquara:
Organizei duas bandas, uma de “Ocarinas”, lecionei, particularmente, meninos em piano e violino, dirigi e cantei “canticum sacrum”. Escrevi diversas músicas, sacras e profanas.
Tinham acabado suas agruras de comerciante.
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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