Acordo com o alarido dos sabiás. O ninho, eles o fizeram no beiral do telhado da sacada de meu quarto. Olho a hora – seis da manhã. Cedo para levantar, ainda mais depois da noitada da virada de ano, e do espumante.
Porém, me sinto excepcionalmente disposta. Levanto, desço em silêncio, abro a porta da frente. Saio para o jardim. O dia amanheceu límpido. Todos ainda dormem. Do portão, espio o mar a cem metros. Ah, vou.
Com a brisa fresca da manhã arrepiando a pele, caminho devagar pelo meio da rua de pedras irregulares. As casas ainda fechadas, os jardins bem cuidados. Fecho os olhos por um instante, estão em minha mente em mínimos e adoráveis detalhes - as flores, as cercas, as palmeiras. De cada uma um encantamento – desta a buganvília escalando o telhado, daquela os mimos-de-vênus vermelhos, de outra as amendoeiras...
No calçadão, tiro as sapatilhas. Com pés descalços, caminho na areia fofa e áspera dos cômoros. Observo a vastidão. Ali estava o mar. O marulhar das ondas. Ali estava eu. Na manhã tão diferente da de ontem. Parece que em cada manhã o mundo se renova.
Olho para o horizonte. Uma tênue linha. Quase se confunde entre o azul do céu refletido no azul do mar. Tento um exercício de imaginação - a continuidade do oceano na curvatura da Terra, daqui até a África...
Ali éramos - as garças, outras aves que não sei nomear, os seres do mar e eu – em corpo/alma/natureza conectados. Praia deserta. Inspiro fundo o ar com leve cheiro de maresia e o retenho em meus pulmões plenos desse sopro de vida. Uma prece ao Universo – que todas as pessoas do mundo todo possam respirar assim...
Molho os pés nas espumas brancas das ondas que quebram na praia. A maré subiu durante a noite e deixou a areia bem lisinha, virgem, sem pegadas. Agora, somente as minhas. O Sol está alto e quente, apesar de ainda ser cedo. O mar murmura segredos, vai, vem, puxa, repuxa, bate, volta... em ritmo constante. Tanta beleza, tanta solidão, tanta calma. É 2021. Continuo a respirar fundo. Eu existo.
Costanza não é meu nome. Ela, a aprendiz de escritora, me chama assim, pela forma como ela me vê. Ando, ando, ando. Penso, penso, penso. Sou constante, firme, permanente em minha busca pelo autoconhecimento.
Ainda não sei quem sou. Há um mar dentro de mim, cujas ondas batem e voltam, batem e voltam. Nalguns dias, meu mar interior está revoltoso, revolve as areias profundas – a dor de viver – os fracassos – os medos – as inseguranças. O mundo parece condenado, pandemia, injustiça, ganância, corrupção, miséria, desequilíbrio ecológico, dá um aperto no peito, um sufoco.
Noutros dias o mar de dentro está calmo, busca o encontro, o amor, a esperança. Mas tenho lá os meus segredos, e vou permitir a ela, a aprendiz de escritora, desvendar um que outro dos meus mergulhos internos, apenas alguns.
Por estar de férias na praia, com tempo para refletir e contemplar a paisagem, a aprendiz de escritora concluiu que nem sempre a ambientação externa rima com a interna - a da nossa alma. Chovemos por dentro em dias de luz, sorrimos em dias de temporais. Concordo, e dou ênfase à palavra movimento – movo o corpo, exercito-me, movo a imaginação, solto amarras e avalio possíveis vidas. Moto contínuo. De qualquer forma. Parar seria desistir. Isso, jamais.
Viajo por dentro de mim mesma, embrenho-me em labirintos. Procuro forças que me permitam suportar com serenidade tanta incompreensão e burrices (me perdoem os burrinhos de verdade) e maldade dos seres que se dizem humanos. Faço mergulhos externos e internos, afinal, tanto o mar da praia como o mar da vida nos dão caldos.
Meio-dia. Sol fortíssimo, ardência na pele, suor e sal no corpo. Hora de voltar, tomar um chuveiro. Um último mergulho nas ondas do mar borbulhante, que batem e voltam, batem e voltam...
Caminho na espuma das ondas que quebram na areia, uau, um siri me prega um susto – de pé, apoiado nas patinhas traseiras me ameaçou com suas tenazes, eu, hein, saí logo dali. Ele era lindo, em tons de azul e roxo nas patinhas. Recolho a cadeira, coloco o chapéu e retorno à casa.
Na volta, observo as casas de outro ponto de vista, contrário ao da ida, casas com janelas e portas abertas. As folhas das árvores brilham, as flores no máximo da exuberância. Com o mar às minhas costas, observo a serra, as montanhas ao longe, muito além do final desta Rua São Leopoldo, na Praia Paraíso.
Em muda contemplação, continuo a respirar, de leve. A natureza é um tesouro maravilhoso em cores, luzes e sombras, sons e cheiros. Tenho nutrido esses encantamentos no canto dos pássaros, no ruflar de suas asas, no farfalhar das folhas das árvores, nos perfumes das flores.
E mais, cultivamos um canteiro com temperos. Eu os colho para complementar os pratos. Ao me aproximar, de mansinho, com a tesoura em mãos, converso com eles, peço licença, é só um galhinho, e agradeço. Assim, evito que as plantinhas desmaiem. Têm vida. A retribuição é imediata, o perfume fica no ar e nas mãos.
Temos aqui sálvia, manjericão, alecrim, cebolinhas, salsa e alfaces. Hoje, para o almoço da família: um linguado com batatas-doces em rodelas, tudo salpicado com essas especiarias, a mais pura energia vital. Saladas decoradas com manjericão. Um bom vinho branco gelado.
O dia está lindo e ainda na metade. Mesmo daqui, ouço o mar no constante eterno borbulhar. Bate e volta. Os pássaros se abrigaram nas sombras das árvores. Suspiro. Respiro. Aspiro. Estou viva e o que me rodeia adquire significados. Respiro suavemente. Ainda existo.
Ando, ando, ando. Penso, penso, penso. Como sou um enigma para mim mesma, tento reorganizar o vivido, para ressignificá-lo. O passado não é imutável, para mim, nessa batalha interior, tenho pensamentos recorrentes, que vão e vêm, como as ondas do mar, desde a infância até a idade adulta.
Recordar fatos, inquietações e sensações íntimas, num fluxo de tempo sem controle, faz parte de meu mundo interior. E, a cada recordação, acrescento algo. Portanto, já nem sei o que é real ou imaginação. Em meu monólogo interior, faço suposições, e se...?
Se... eu segurar, abraçar, acalentar aquela menininha de cabelos castanhos, com franja, covinhas nas faces e dentes separados? Significaria dar segurança à “manteiga derretida”. Os coleguinhas do primeiro ano tramavam para vê-la chorar. Conseguiam. (Hoje, ainda sou sentimental).
Se... dialogasse com a adolescente que habita em mim, sobre seus dilemas, dúvidas sobre o amor e o futuro? Se... não tivesse casado, e não tivesse parido dois filhos? Como seria? Se... tivesse aceitado aquele rapaz que tinha uma lambreta e colhia as violetas cheirosas do canteiro da mãe dele para me presentear?
Se... olhasse com mais atenção ao jovem que compunha músicas e fazia serenatas para mim? E... se... ao invés de professora, tivesse optado por outra carreira, como bailarina, aeromoça...? (sim, hoje comissária de bordo), ou ... quem sabe, jornalista, ou escritora? Apenas sonhos.
Se... amigas amadas, ainda estivessem vivas? Ah, Maria Helena e Alice, sinto falta de vocês. Tem vezes que gostaria tanto de parar de pensar, de acalmar a mente, de ter sonhos bons, de não ter culpa por ser uma mulher acima do peso, que não se sente amada como gostaria, que não fosse cobrada por estar envelhecendo.
Tão imperfeita, incompleta, inacabada. Por isso, ando, ando, ando. Penso, penso, penso. Meu mar interior tem ondas, que vão e vêm, vão e vêm, batem e voltam. Não tenho controle de nada. Quando eu tomar consciência de quem sou, aí terei poder.
A tarde chega ao fim. A luminosidade suaviza-se em cores azuis, rosadas, alaranjadas. O Sol se põe em silêncio a oeste numa explosão de cores iridescentes que transpassam algumas nuvens. As andorinhas, os sabiás, os bem-te-vis e as curicacas se chamam uns aos outros com gritos estridentes para o retorno aos ninhos.
Está anoitecendo, logo o espaço será das aves noturnas, do cricrilar dos grilos, do coaxar dos sapos. O lagarto que dá as caras na porta da cozinha da vizinha para ganhar um ovo deve ter-se recolhido. Algumas espécies de flores fecham as pétalas.
Antes de morrer, lá pelos lados da Serra, o Sol emite os últimos reflexos e à medida em que ele vai desaparecendo as sombras surgem aqui, e ali, os pássaros se calam, empoleirados. Ouço o barulho das ondas se quebrando na praia, e, no recuo do mar, milhares de tatuíras servem de banquete para as gaivotas.
Anoitece. No céu, pouco a pouco, as estrelas se acendem, como fagulhas, cintilam e logo compõem uma miríade de estrelas que parecem vivas. Lembro da “Noite Estrelada” de Van Gogh. O perfume da noite me envolve com uma brisa reconfortante.
E eu, aqui embaixo, olhando para o céu escuro, todo estrelado, me sinto como um grão de areia a complementar esta vastidão do Universo. A Lua sobe no firmamento. Que visão maravilhosa! Minha coleção de observações me encanta. Inspiro fundo o ar puro. Entro em casa para fazer o jantar. Continuo a existir.
Costanza. Vejo-a diariamente, várias vezes ao dia. A cada vez que vou à janela, ou à sacada do meu apê na Av. Júlio, ou mesmo na rua. Costanza vai e vem, bate e volta desde manhã até o entardecer.
Alta, elegante, pele morena, máscara no queixo, roupas limpas, cabelos grisalhos longos, e crocks nos pés, que mal tocam no chão. Parece flutuar. Ensimesmada, não encara ninguém, (uma ocasião ela me disse oi), conta nos dedos, mergulhada.
Penso que sua alma esteja quebrada, escolheu isolar-se em meio aos transeuntes, nessa batalha interior, à procura de si, sufocada por angústias, ansiedades, medos e fantasias, Costanza é constante. É Constância. É como o mar, bate e volta. Anda, anda, anda. Pensa, pensa, pensa.
P.S. Se ... meu leitor ou leitora questionar: Costanza seria um alter-ego? Talvez sim, talvez não. Na verdade, aceitei o desafio de meu editor Marcos Fernando Kirst e me senti grata pela confiança e me inspirei para compor este texto experimental após a leitura de duas obras literárias: “As Ondas” de Virginia Woolf e “Kafka à beira-mar” de Haruki Murakami.
A vida vem em ondas... como o mar...
FOTOS: Marília Frosi Galvão
Marilia Frosi Galvão é professora, escritora e cronista
galvao.marilia@hotmail.com
Da mesma autora, leia outro texto AQUI