Nasci e passei minha primeira infância perto de uma serraria, em Santa Teresa de São Francisco de Paula. Meus vizinhos e amigos mais próximos – o Darci, o Andi e o Neri – eram filhos do chefe da serraria.
O proprietário, me diziam eles, era um certo Muratore da cidade de Taquara. E o pai de meus amigos, que cuidava da serraria, era um Bonatto, natural de Santa Lúcia do Piaí. Faziam parte da minha paisagem cotidiana as pilhas de toradas, de tábuas e de tabuinhas de pinheiro, a nossa araucária.
Eu não sabia, mas estava sendo testemunha do “Ciclo da Madeira”, que impulsionou a economia da Serra Gaúcha depois da abertura das estradas de ferro, como afirmou Celeste Gobatto, em texto de 1925: “A indústria da madeira foi, entre as indústrias extrativas, a que mais se desenvolveu com a abertura das estradas de ferro e com a crescente demanda por essa matéria. [...] Numerosíssimas são as serrarias movimentadas por rodas hidráulicas ou locomóveis”.
Por essa época estava já em marcha a colonização da fronteira do Rio Grande do Sul com Santa Catarina, às margens do Rio Pelotas, uma área coberta de pinheirais. Gobatto, ao lado de salientar a importância econômica de sua extração, chamou também a atenção para os seus riscos, “com o clima lentamente se transformando, o que dá origem, às vezes, a longos períodos de seca que em outros tempos não se conheciam”. E isso escrito em 1925, há quase cem anos!
Na pesquisa realizada nessa região, com foco nos usos e costumes locais, um tema inevitável foi o da vida nas serrarias...
Um morador de Pinhal da Serra, antigo distrito de Vacaria, lembra que tinha catorze anos quando viu, perto de onde morava, a construção da serraria em que trabalhou depois por muitos anos.
A serraria era movida por máquina a vapor, alimentada com lenha do mato e também com restos das toras serradas: “essa máquina queimava a lenha, e daí aquecia a água, que fazia pressão pra mover a primeira polia. Daí engrenava a correia em outro eixo que começava a mover e tocar a serra, quando aquecia o suficiente a máquina. Tinha um relógio que marcava a pressão”.
Várias competências eram necessárias para tocar uma serraria. A pessoa que trabalhava na máquina a vapor era chamada de foguista. Tinha depois o serrador, que cuidava do corte da madeira, e o refilador, encarregado do polimento final...
O foguista fazia fogo na máquina e cuidava para que ele desse pressão suficiente. Começava a trabalhar duas horas antes dos outros, era o primeiro que começava, pelas seis horas da manhã, segundo o informante: “O foguista levava o café pronto de casa. Tomava o café na serraria, enquanto limpava e aquecia a máquina. Depois ficava esperando ‘a caloria’”.
Na realidade, o foguista era o primeiro a iniciar dentro da serraria. Antes dele, os toradeiros já estavam preparando os bois para irem para o mato.
Para o serviço do mato, igualmente, o informante foi minucioso. “Tinha os toradeiros: dois homens pra derrubar um pinheiro com o serrote e um pra descascar, os três toradeiros. Se a serraria dava muita produção, então tinha mais, trabalhavam em quatro, daí”.
O processo todo de derrubada, descrito pelo informante, era o seguinte: fazia-se um talho profundo, a machado, de um lado do tronco, do lado para onde o pinheiro devia cair; depois, do outro lado, punha-se o serrote, um pouco acima do nível do talho do machado, e começava-se a serrar. Os serradores ficavam agachados, o que era muito cansativo. Quando o serrote estava no meio da grossura do pinheiro, era colocada uma cunha, para não deixar que o tronco caísse para trás, no caso se desse um vento. Era uma cunha de ferro, batida com o malho. A cunha servia também pra não ficar pesado o serrote, senão ficava muito pesado, não tinha quem puxasse o serrote; no momento de derrubar o pinheiro, colocavam uma cunha grande de ferro e batiam com um malho pesado; o serrote ficava lá dentro, só era retirado quando caía o pinheiro.
Esse era o momento mais crítico da derrubada: a pessoa tinha que conhecer muito bem, tinha que ter prática, muito conhecimento do tombo do pinheiro; não era qualquer um que podia derrubar o pinheiro.
Naquela época, segundo o informante, só eram cortados pinheiros com cinquenta centímetros ou mais de diâmetro. Pinheiros mais finos só eram cortados para fazer os estaleiros.
Seu Loca, nascido em São Francisco de Paula, trabalhou por trinta anos numa serraria de Bom Jesus, e também guardou lembranças muito detalhadas de seu trabalho. Mas isso fica para a próxima crônica!
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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