Caxias do Sul 24/11/2024

A segunda primavera

Nossa cultura é implacável com o envelhecimento das mulheres, valorizando a juventude e a falsa ideia de beleza eterna
Produzido por Lisiane Dossin Miotti , 12/02/2021 às 09:20:13
Foto: ARQUIVO PESSOAL

“A natureza dá a todo tempo e toda estação a sua própria beleza... é apenas uma sucessão de mudanças tão gentis e delicadas que mal podemos notar seu progresso.” (Charles Dickens)

A passagem do tempo na nossa vida é assim. As transições são tão sutis que só percebemos o que estava acontecendo quando a transformação está completa. Mas existem, na vida da mulher, dois marcos que são extremamente bem definidos porque sinalizam um novo florescer, uma primavera.

No idioma mandarim, predominante na China, a palavra que traduz menarca - ou puberdade, para as meninas - significa “primeira primavera”, simbolizando poeticamente a beleza da passagem da vida infantil para a vida adulta e fértil, e a palavra que corresponde a menopausa significa “segunda primavera”, porque é considerada de uma forma tão especial como a primeira. No idioma japonês, menopausa significa “mudança de vida”.

Talvez a questão linguística influencie culturalmente a percepção que as sociedades asiáticas têm dessa fase ou provavelmente seja o inverso: a percepção tão natural e tranquila que as mulheres asiáticas têm do período faz com que a denominação seja tão bela.

O fato é que elas vivem essa fase de forma muito diferente das ocidentais, por várias razões. Sabemos que sua alimentação rica em legumes e soja resulta em menos sintomas, melhor controle do peso corporal e, consequentemente, em menor incidência de doenças crônicas. Seu estilo de vida inclui práticas de meditação ou de equilíbrio porque culturalmente elas sabem que precisam se harmonizar com o mundo ou, caso contrário, estarão em constante desequilíbrio.

Mas existe uma questão subjetiva entre as orientais que acho fundamental: nessas sociedades, o valor da mulher não está na forma física e na ilusão de eterna juventude. A imagem de "sempre jovem” não é aceita pela sociedade oriental porque o envelhecimento é encarado com respeito e como sinal de sabedoria e experiência.

O tema “menopausa” para mim sempre foi uma paixão e uma inquietação. Trabalho há mais de 20 anos cuidando das mulheres em todas as suas idades e essa fase da vida sempre considerei de extrema importância. Sempre me deixou a desejar a maneira como nós, especialistas em saúde da mulher, de uma maneira geral, a abordávamos. Acredito que ela merece muito mais atenção e entusiasmo. Então, venho me dedicando a estudá-la, exclusivamente, nos últimos quatro anos da minha vida profissional.

Nas pacientes com as quais pude fazer a abordagem correta dos sintomas, no momento exato, o que me permitiu fazer a intervenção adequada com boa aceitação, testemunhei desempenhos extremamente positivos que não só garantiu-lhes uma transição satisfatória mas deu a elas uma qualidade de vida excelente nos anos que se seguiram.

Já para muitas pacientes que chegavam para mim com anos transcorridos após a menopausa, sem a abordagem correta, foi muito difícil tratar os sintomas e corrigir as perdas porque as opções de tratamento que se pode usar tardiamente são escassas e existem certas sequelas que são difíceis de reverter.

Esse período de vida engloba a pré-menopausa, a menopausa “per se” e a pós-menopausa. A esse intervalo específico da vida da mulher chamamos no Brasil de climatério, que geralmente acontece no intervalo entre os 40 e os 60 anos. Então, são muitos anos vivendo essa “transição” e muitas coisas acontecem nesse período. Não podemos encará-lo como apenas uma passagem. Muito acontece no nosso corpo e na nossa vida durante esse tempo e o que está acontecendo não está sendo bem resolvido.

Visões distorcidas

Tenho acompanhado cientificamente como esse período está sendo atendido em vários lugares do mundo, principalmente no mundo ocidental. Muito do conteúdo dos meus estudos vem dos Estados Unidos, Reino Unido, Austrália e Canadá.

Confesso que vejo com frustração que os especialistas em menopausa do mundo inteiro ainda denunciam que as mulheres não estão adequadamente instruídas para entender esse período e que mesmo quando comparecem a consultas de rotina com clínicos gerais e ginecologistas elas não têm suas queixas resolvidas e nem mesmo exploradas.

Muitas queixas não são consideradas parte do climatério e, por consequência, seus sintomas não são tratados como deveriam. Para se ter uma idéia do disparate, mundialmente, mulheres com sintomas relativos a essa fase recebem três vezes mais prescrições de antidepressivos do que de terapia hormonal. Isso é ultrajante, para não dizer mais!

Temos nossa parcela de culpa, também, porque nós não aceitamos a passagem do tempo e a chegada do climatério e, por consequência, não sabemos o que esperar e, quando vivendo-o, não sabemos o que estamos procurando. Todas nós, de certa maneira, conscientemente ou inconscientemente, participamos da negação.

Sabemos que, logo que os sinais da idade são acusados pelo espelho, muitas de nós prontamente saímos em busca do dermatologista para corrigirmos os sinais de envelhecimento da face e em busca do cirurgião plástico para corrigirmos efeitos do tempo sobre nosso corpo. Mas e sobre a nossa idade interna, fazemos alguma coisa? Sabemos que a nossa cultura é implacável com o envelhecimento das mulheres, valorizando a juventude e a falsa ideia de beleza eterna, dando, inclusive, ênfase para mulheres de meia-idade com visibilidade pública que, em vez de estarem celebrando sua maturidade e cultivando o respeito pela mulher na meia-idade, se escondem atrás de cirurgias plásticas, liftings e outros artifícios.

Essas “celebridades” não têm a humildade de dividir com seu público as lutas pessoais que travam no climatério e que poderiam ajudar as mulheres a entenderem que não estão sozinhas e existe solução. Não temos modelos femininos honestos e transparentes quanto a essas questões para nos inspirar.

Questão de aceitação

A transição acontece quando a nossa autoestima está em xeque. O tempo não é gentil com a nossa pele e com as nossas formas e a lei da gravidade infelizmente existe para todas. Muitas de nós constroem sua autoestima de maneira mais integrada ao intelecto e com as demais realizações da vida e, assim, temos mais ternura ao reconhecer os sinais do tempo no espelho como cicatrizes de batalha, sentindo orgulho pelas vitórias, mas muitas têm muito da sua identidade atrelada à forma física e à aparência, o que torna mais difícil a aceitação dos sinais da idade.

O que quero dizer com isso é que como enfrentaremos essa transformação depende muito de quanta aceitação temos de nós mesmas e do quanto vivemos plenamente até aqui. Temos de encarar essa nova etapa com franqueza e coragem.

Quem me acompanhou até aqui já entendeu que quero levar às mulheres esclarecimento e consciência sobre um momento muito importante de nossas vidas. Agora paro por aqui para permitir-lhes reflexão. No meu próximo texto vou contar por que tudo isso ficou tão nebuloso e vou mostrar-lhes que há luz no fim do túnel.

Lisiane Dossin Miotti é médica especialista em Mastologia, Ginecologia e Obstetrícia com formação na PUC-RS. Cursando especialização em Menopausa, Ciências do Bem-Estar e Longevidade nos EUA, onde vive há 5 anos.