Caxias do Sul 22/11/2024

A saga do carro popular no Brasil

Modelo foi crucial para o desenvolvimento da indústria automotiva nacional
Produzido por Luiz Carlos Secco, 06/06/2023 às 08:46:45
Foto: Arquivo pessoal

A receita de reduzir o conteúdo e equipamentos dos modelos de entrada ou diminuir impostos por um determinado tempo como forma de aplacar preços, aumentar as vendas de veículos e vencer os momentos de crise da indústria automobilística brasileira já se mostraram ineficazes nos médio e longo prazos. Basta olhar para trás e ver que a produção e vendas de carros em 2022 foram no mesmo patamar de 2004 e 2005.

O recente anúncio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin, da publicação de medida provisória para reduzir impostos e, consequentemente, os preços dos veículos de até R$ 120 mil em uma faixa que vai de 1,5% a 10,96%, poderá até proporcionar elevação nas vendas, mas não resolverá o problema em si e, após o período de duração da medida provisória, voltaremos a patinar sem uma base ou estrutura consistente para crescer.

Nem mesmo as ponderações de Geraldo Alckmin sobre as bases para a redução de impostos estarem em aspectos como eficiência energética e o adensamento industrial deverão garantir o desenvolvimento do setor. Os veículos mais baratos, econômicos e com maior nível de nacionalização de componentes terão direito a descontos maiores de impostos.

Continuo achando que as medidas são paliativas e não vão proporcionar o necessário desenvolvimento da indústria automobilística, assim como não o fizeram nas ocasiões passadas. Basta avaliar a declaração do ministro do Planejamento Fernando Haddad de que o programa proposto terá a duração entre três e quatro meses. E depois, como ficará? Ao longo de minha carreira, assisti à edição de vários planos para baratear os carros e aumentar as vendas.

A primeira crise a afetar a indústria automobilística e a assustar os clientes ocorreu em 1964, com apenas 7 anos de experiência do Brasil na produção de automóveis, quando as dificuldades econômicas causaram preocupação ao público que passara um período de euforia e de entusiasmo pela oportunidade de adquirir um carro. As dificuldades motivaram o governo a planejar o estímulo à demanda de mercado com a ideia de evitar o desemprego com a criação de um carro popular despojado do que não fosse essencial e que pudesse ser vendido a um preço que boa parte da população tivesse acesso.

Surgiram, então, o Gordini Teimoso, produzido pela Willys-Overland do Brasil; o DKW-Vemag Pracinha, o Simca Profissional e o Volkswagen Pé-de-Boi. Para facilitar o acesso a esses carros, o programa contou com a participação da Caixa Econômica Federal, que concedeu o financiamento necessário com taxas de juros mais baixas do que as praticadas pelo mercado financeiro. O incentivo ao programa tinha também o objetivo de aumentar a produção da indústria, evitando a crise e o desemprego.

O programa teve curta duração porque as fábricas exageraram no despojamento e os carros foram empobrecidos em demasia. Os responsáveis pela ideia exageraram na simplificação dos veículos, o que desestimulou as pessoas que estavam na expectativa do programa, ávidas pela oportunidade de acesso aos automóveis. O programa foi perdendo o entusiasmo e acabou cancelado.

Em dezembro de 1969, as fábricas tinham em seus pátios e nas concessionárias 12 mil automóveis estocados por queda de vendas em consequência do aumento de preços entre 4% e 6%, afastando os clientes das lojas. E eu e o Emílio Camanzi, que trabalhávamos no Jornal da Tarde, fizemos uma reportagem apresentando o drama vivido pelo setor com o título “Compre 12 mil automóveis para salvar a nossa indústria”.

Naquele ano, a indústria estabeleceu o recorde de produção, com um total de 353.700 veículos, um crescimento de 26% sobre as 280.000 unidades faturadas no ano anterior. Como éramos pobres: apesar dos anos seguidos de recordes e, imaginem, 12.000 automóveis para salvar a indústria que, hoje, produz e vende mais que esse total por cada dia. Como a moda eram os carros, o público retomou as compras, o mercado absorveu os carros estocados e a indústria continuou a crescer, fechando 1970 com mais de 416 mil unidades e a evolução de quase 18%.

Nos anos de 1990, outro programa resultou na volta da produção do Volkswagen sedã, o Fusca, para a Autolatina atender à sugestão do presidente da República, Itamar Franco. O carro, que recebeu o apelido de Fusca Itamar, serviu como símbolo de uma nova injeção para a indústria, mas vendeu pouco e parou de ser produzido em 1996.

Em 2007 e 2008, já no governo Lula, outra medida para impulsionar o mercado, com linhas de crédito e condições de financiamento em até 84 meses. O mercado teve período positivo de vendas, com os consumidores comprando o seu carro novo. Mas, também, alguns anos depois, resultou em uma grande inadimplência e em uma crise maior do que a inicial e, em 2016, retrocedemos à produção de 2004.

No fundo, vários ditos populares poderiam representar muito bem o que estamos assistindo. Escolho este: “É como cobertor de pobre, aquele que, quando cobre os pés, descobre a cabeça”.

O momento enfrentado pela indústria automobilística brasileira hoje não é, nem de perto, ruim como outros já superados. Então, deveríamos escolher o caminho da eficiência, da evolução, do desenvolvimento sustentado, mesmo que seja mais difícil, demorado e menos popular. Não o do imediatismo ou o caminho mais fácil e curto, pois, no longo prazo, essas decisões retardam o desenvolvimento da nossa indústria, que deveria estar focada em como atuar mais rápida e eficazmente para a descarbonização e em como oferecer os modelos mais modernos e sustentáveis.

Entre os exemplos que acabaram dando resultado e, de maneira sustentada, proporcionaram a evolução da indústria automobilística brasileira, cito o desenvolvimento dos veículos com motorização 1.0. Aconteceu também nos anos de 1990 e a proposta era o lançamento de veículos com motor de 1000 cc para tornar o carro mais popular e barato.

Esse movimento transformou a nossa indústria e levou a Fiat (hoje Stellantis) do quarto para o segundo lugar em vendas, pois foi a que desenvolveu e lançou mais rápido um modelo, o Uno Mille.

O motor 1.0 foi o carro-chefe das montadoras no país e o Brasil se transformou em plataforma mundial de desenvolvimento de carros compactos. Os carros com motor 1.0 provocaram a evolução dos nossos veículos, pois possibilitaram os nossos engenheiros a trabalhar em como tornar mais eficientes e potentes esses motores e surgiu o motor 1.0 turbo da Volkswagen, reconhecido internacionalmente como o mais potente 1.0 do mundo naquela época.

Uno Mille foi um sucesso de público e de vendas (Foto: Divulgação)

Essa movimentação coincidiu com a tendência de downsizing mundial para tornar os veículos menos poluentes e fez com que o Brasil estivesse preparado para desenvolver e produzir motores menores e menos poluentes e, ao mesmo tempo, mais eficientes e potentes.

Hoje, os modernos motores 1.0, 1,2, 1.3, 1.4 e 1.5 turbo substituíram motores de 2 e 3 litros oferecendo as mesmas potência e torque, com menor consumo e emissões. Tanto que equipam mais de 50% dos veículos produzidos no Brasil, inclusive SUVs médias e grandes.

Querem outro exemplo de programa que fez da nossa indústria pioneira no desenvolvimento tecnológico mundial? O Proálcool. Criado em 1975 como solução para o Brasil enfrentar a primeira crise mundial do petróleo, o Proálcool foi o maior programa de energia renovável do mundo na época.

O êxito do Proálcool serviu de modelo para governos de vários outros países desenvolvidos, como da Europa e Estados Unidos, interessados em desenvolver programas próprios de etanol, receosos da dependência do petróleo do Oriente Médio. O álcool produzido da cana-de-açúcar foi e é uma fonte de energia renovável e limpa, e fundamental na composição da matriz energética brasileira, capaz de reduzir o uso dos combustíveis fósseis. Mais recentemente, na busca global pela rápida descarbonização, o álcool é uma opção viável e barata e pode ser usado como combustível na transição do veículo movido a combustão interna para o elétrico, em que o etanol será fonte primária de energia para o motor elétrico.

Enquanto o veículo 100% elétrico ou híbrido for inacessível para o consumidor brasileiro pelo elevado preço, o incentivo ao uso do álcool como combustível traria benefícios imediatos ao meio ambiente sem onerar o bolso do cidadão brasileiro que, de maneira inteligente e barata, contribuiria para essa tão desejada e necessária descarbonização.

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Luiz Carlos Secco trabalhou, de 1961 até 1974, nos jornais O Estado de São Paulo e Jornal da Tarde, além da revista AutoEsporte. Posteriormente, transferiu-se para a Ford, onde foi responsável pela comunicação da empresa. Com a criação da Autolatina, passou a gerir o novo departamento de Comunicação da Ford e da Volkswagen. Em 1993, assumiu a direção da Secco Consultoria de Comunicação.

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