Por MARCOS FERNANDO KIRST
Cultura subalterna e subserviente é aquela que alegremente se lança à importação de elementos exógenos e absorve como suas as manifestações e tradições oriundas de fora, em detrimento da valorização de seus próprios aspectos culturais.
Com que alegria enchemos a boca e enrolamos a língua para pedir “delivery” ao invés de telentrega; transformamos em “home office” nosso escritório caseiro; gastamos grana em “sales” nas lojas que fazem liquidação, onde os preços pintados na vitrine anunciam convidativos “50% off” de desconto. Com imensa generosidade, absorvemos e acolhemos a cultura alienígena, ao custo de embaçarmos nossos próprios valores. Já temos know-how nesse processo, sem nem pagarmos royalties. Importamos até os agentes do medo, preferindo as bruxas do Halloween ao invés do Saci-Pererê.
Saci-Pererê tem seu dia: 31 de outubro
Esta crônica é um desagravo e uma defesa do Saci-Pererê, às vésperas da data de 31 de outubro, o Halloween dos países anglófilos, ou seja, dos povos habitantes de regiões que têm a língua inglesa como base cultural, a saber, Grã-Bretanha, Estados Unidos e satélites. Aqui no Brasil, não falamos inglês (exceto para pedir delivery de pizza, conforme já destacado), mas adoramos um Halloween, com abóboras enfeitadas com velas dentro, bruxas, gnomos e a brincadeira de “gostosuras ou travessuras” (“tricks or treats”, você sabe falar, você viu nos filmes). Não sabemos usar a crase, nem o verbo haver, escrevemos paralisação com “z” e socorremos feridos aos hospitais, mas pedimos delivery e grafamos certinho Halloween, nos nossos notebooks. Nem um Saci imaginaria traquinagem maior contra a língua e a cultura verde-e-amarelas.
Eu, de minha parte, confesso: sou velho, tradicional, saudosista, e prefiro o Saci-Pererê de uma perna só, tocando o terror de dentro de seu redemoinho particular, fumando cachimbo e dando nós nas crinas dos cavalos. E também vibro com o medo do Bicho-Papão, do Homem do Saco, da Cuca, da Mula Sem Cabeça, do Chupa-cabra, do Caipora e do Curupira, do Boi-Tatá, da Iara, da Teiniaguá.
O terrível Boi-Tatá, que apavora o Pampa gaúcho
E se é para importar temores, prefiro ainda perder o sono temendo aquelas entidades imaginárias trazidas pelos imigrantes italianos à região da Serra Gaúcha, que passei a conhecer assim que vim morar aqui, como o monstruoso Orco, o atrevido Sanguanel e a Strega, a bruxa (que inclusive dá nome a um dos melhores licores que já provei e que faz tempo não vejo pela aí, nas gôndolas da vida).
O Sanguanel, a tirar o sono dos imigrantes na Serra
Uma lei federal aprovada em 2003 institui no Brasil a data de 31 de outubro como o Dia do Saci. Ninguém conhece a lei, claro, não foi escrita em inglês. Não tenho nada contra o Halloween e tampouco contra a cultura anglófila. Sou leitor apaixonado de Shakespeare, Dickens, Jane Austen, Bram Stoker, Conan Doyle, Stephen King, Hemingway, Paul Auster, as irmãs Brontë, Shelley, Keats, Byron, Poe, Wilde, Mark Twain… e adoro Beatles e Rolling Stones. E Led Zeppelin e Bob Dylan e Eric Clapton e Haim e The Corrs…
Mas isso tudo concomitante e ao lado de Machado de Assis, Eça de Queiroz, Saramago, Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Drummond, Verissimo (s), Quintana, Clarice, Josué Guimarães, Rubem Braga, Hilda Hilst, Pozenato, Jimmy Rodrigues, Flávio Ferrarini, Osman Lins, Caetano, Chico, Secos & Molhados, Raul, Rita Lee, Almôndegas, Tribalistas, Titãs, Legião, Paula Toller, Cartola, Noel Rosa, Selestino Oliveira...
No meu balaio de gostos pessoais, as artes nacionais e alienígenas convivem em harmonia. Apenas, no dia 31 de outubro, faço reserva de mercado e meus joelhos vão bater de pavor é pelo Saci-Pererê mesmo, pois sou fiel aos medos antigos, que falam a minha língua. That´s all, folks!
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