Para darmos prosseguimento ao modo de João Cabral de Melo Neto encarar a poesia, vamos ler o poema “Psicologia da composição”, publicado no livro com o mesmo título, em 1947. O livro todo é uma meditação sobre o papel da poesia. Este poema, em particular, divide-se em oito partes.
Na primeira, João Cabral começa assim:
Saio de meu poema
como quem lava as mãos
O que ele diz é que a linguagem é um fluxo de água, um rio, onde o poeta mergulha as mãos para tirar conchas, cristalizadas pelo sol. Alguma delas talvez lembre a forma do pássaro que habitou nela:
talvez, como a camisa
vazia, que despi.
Isto é, enquanto o poeta está dentro da camisa, ela tem a sua forma. Depois de despi-la, sua forma corporal sai da camisa. O que há por trás dessa imagem? Simples: o poema é uma camisa despida, sem o mundo pessoal do poeta dentro dela.
Na segunda parte, João Cabral é ainda mais claro:
Esta folha branca
me proscreve o sonho,
me incita ao verso
nítido e preciso.
O que quer dizer “proscrever”? Quer dizer banir, proibir a permanência, expulsar. A folha branca do poeta manda o sonho romântico para o exílio. Ela só quer o verso nítido e preciso, aquele que diz o necessário e nada mais, sem adjetivos, sem choro, sem teatralização.
O poeta não quer, também, nada de noturno, só lhe interessa o diurno:
Como não há noite
cessa toda fonte;
como não há fonte
cessa toda fuga.
O não saber para onde ir, a fuga, nada disso deve estar na poesia. O poeta engenheiro não lida com o escuro, só com as coisas claras, não busca sentido no fundo da água, mas na superfície das coisas que não escapam da mão.
Na terceira parte, estão estes versos:
Neste papel
logo fenecem
as roxas, mornas
flores morais;
todas as úmidas
flores do sonho’.
Além de renunciar ao sonho, o poeta renuncia também a fazer discurso moral, porque essas são flores que murcham, se esvaem com o passar do tempo. E prossegue:
Não a forma obtida
em lance santo ou raro [...]
mas a forma atingida
como a ponta do novelo
que a atenção, lenta,
desenrola, aranha.
O poema não pode ser uma inspiração dos deuses ou da sorte, como um achado surpreendente, surgido por acaso. O poema é a forma atingida / como a ponta do novelo, que o poeta vai desenrolando com toda a atenção para não errar nem um pontinho. Tem de fazer como a aranha, buscar a perfeição da teia.
Trabalho que nem sempre dá certo, porque o fio do poema é tão frágil que se rompe / ao peso, sempre, das mãos / enormes. Se o fio se rompe, é preciso começar a teia de novo, prestando mais atenção, medindo todos os pontos. Só quando se consegue atar todas as pontas o trabalho de fazer o poema vai estar concluído.
Mas não terminam aqui as regras, severas, desse engenheiro da poesia.
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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