“Se quisermos combater a discriminação e a injustiça contra as mulheres, devemos começar em casa, pois se, uma mulher não pode se sentir segura na sua própria casa, não se pode esperar que se sinta segura em lugar algum”.
(Aisha Taryam - ativista liberal, jornalista e primeira mulher do Oriente Médio a ser editora-chefe de um jornal de língua inglesa, “The Gulf Today”. Autora do livro “O Oposto da Indiferença”).
Violência contra a mulher não é minha especialidade, mas sim, é da minha conta!
Agosto Lilás é uma campanha nacional de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. A cor lilás foi escolhida para simbolizar a união do rosa e do azul, simbolizando a convivência pacífica e respeitosa que deve existir entre os casais para permitir que esse tipo de violência deixe de existir, mas também simboliza que essa mudança de atitude é responsabilidade de todos nós, de mulheres e homens.
Minha pequena experiência com violência veio, principalmente, dos 9 anos que trabalhei como ginecologista no ambulatório APOIAR, contratada como ginecologista pela prefeitura de Caxias do Sul.
APOIAR é um centro de atendimento a crianças vítimas de maus-tratos, negligência e abuso integrada à Secretaria de Saúde Municipal. Suas equipes são formadas por assistentes sociais, psicólogos, pediatras e ginecologistas, e é constituído, ainda, por conexões com outros órgãos de proteção e amparo à criança. Esse serviço, felizmente, continua ativo e está ainda mais eficiente e experiente, realizando um trabalho muito sério e relevante.
Uma das tantas coisas que aprendi nesse serviço é que, por trás da maioria dos casos de violência contra a criança, existia uma mãe também vivendo uma situação de abuso. Essa mãe geralmente estava passiva, intimidada, deprimida ou atrapalhada demais com o seu próprio sofrimento para proteger seus filhos. Seu “radar de mãe”, aquela tecnologia antiga, mas ainda muito requintada, que todas nós possuímos como componente de fábrica, e que tem a função de detectar situações de risco para nossas crianças, não funciona sob essas condições.
Essa mãe não consegue perceber quando algum familiar, vizinho, amigo ou alguém em quem confia ou relacionado à escola, representa uma ameaça. Nem reconhece um ambiente que oferece perigo para a integridade dos seus filhos. Em muitos casos, essa mãe abatida acaba por ser negligente ou, mesmo, a própria agressora.
Então podemos dizer que, sem dúvidas, num lar em que existe violência contra a mulher, as crianças nunca estão seguras.
Quero chamar a atenção de vocês para essa questão e abrir seus olhos e seus ouvidos para possíveis pedidos de ajuda que estejam implícitos nas mulheres que convivem com você ou cruzam seu caminho de diversas formas, todos os dias.
Temos muitos conceitos pré-estabelecidos na nossa sociedade que nos fazem acreditar que é algo que só afeta mulheres menos privilegiadas e carentes, só acontece em abusadores de álcool ou drogas e muitos de nós ainda carregamos a crença que essas mulheres “escolhem” permanecer nesse ambiente violento. E isso só reforça nossa postura indiferente e nosso distanciamento dessas questões.
Desde a criação da Lei Maria da Penha, nosso país tem evoluído muito no combate a essa situação. Foram criadas leis e medidas protetivas que tornam mais rápidas as ações contra os agressores. Foram criadas delegacias dedicadas à mulher e casas que funcionam como abrigo de proteção para acolher essas mulheres vítimas de violência, bem como seus filhos, enquanto se busca uma situação definitiva quanto a sua moradia e o distanciamento do agressor. Paralelamente criou-se uma estrutura de educação, vigilância, proteção e amparo gerida por equipes multidisciplinares.
Mas tudo isso ainda é pouco, é escasso, não alcança todos os municípios e a justiça ainda é muito lenta na punição de crimes de homens contra mulheres. Mas pode melhorar e muito, se pedirmos, se clamarmos, se divulgarmos, se as mulheres demandarem seus direitos nos órgãos responsáveis e se realmente pedirem ajuda.
As formas de violência contra a mulher que mais se ouve a respeito são as de natureza física, que pode levar à morte, e a sexual, que é tão antiga quanto a história da humanidade e, repugnantemente, ainda está em todos os lugares.
Mas existem muitas outras formas de violência contra a mulher que não são tão explícitas quanto o abuso sexual e físico. Essas não são visíveis para os olhos e ouvidos dos outros porque não fazem “barulho” e não deixam marcas físicas, mas podem durar uma vida inteira.
Existem o assédio sexual e a discriminação de remuneração no ambiente de trabalho que constrangem as mulheres profissionais e às vezes mutilam a fé delas no valor no seu trabalho e na igualdade de oportunidades e de respeito profissional.
Existe o abuso moral dentro de suas casas que as priva de liberdade, de escolhas e de autoridade sobre seus filhos e seu lar. O abusador frequentemente controla, humilha e intimida. Obriga-as a tolerar situações de desrespeito como a infidelidade e ofensas quanto à sua posição de companheira, mãe e esposa. Eles as impedem de abandoná-los por meio de ameaças à sua integridade física e à de seus filhos.
O abusador costuma usar palavras ofensivas e discursos que diminuem sua autoestima e a fazem sentir só e desamparada, enfraquecendo sua capacidade de encontrar forças para se defender do agressor ou para abandonar esse ambiente opressor.
Às vezes existe também o abuso financeiro do agressor, que não provê sustento para sua família, ou não as permite escolher como o dinheiro deve ser usado em benefício da família e pasmem que, numa porcentagem muito grande dos casos de violência contra a mulher, são elas as principais provedoras do lar.
As raízes desse problema são profundas e muito antigas. Mas é mais do que hora de acabar. Nenhuma mulher pode se sentir completamente livre e segura enquanto não tivermos igual acesso à justiça e direitos. Nenhum abusador pode pensar que ficará impune.
Se você deparar com uma situação como essa, ou perceber que alguém que você conhece pode estar vivendo uma situação de abuso, não ignore. Muitas pessoas enxergam os “sinais”, mas não sabem como ajudar ou temem se comprometer e se colocar sob risco.
Mas a melhor ajuda que você pode dar ainda é oferecer seu ouvido e sua empatia. Pergunte o que está acontecendo de errado com ela. Muitas mulheres não sabem que o que as oprime e violenta é crime previsto em lei. Elas não sabem como buscar ajuda ou temem ser hostilizadas, expostas ou constrangidas.
Muitas vezes, só por ouvirmos essa mulher e dizermos que o que ela está vivendo não está certo e não é justo e que ela pode viver uma vida melhor e fazer escolhas, já a empodera para planejar um pedido de socorro ou um caminho de saída.
Elas não necessariamente precisam ir a uma Delegacia da Mulher para pedirem ajuda num primeiro momento. Infelizmente, a grande maioria se sente intimidada a fazer isso. Elas precisam saber que existe ajuda especializada através de profissionais muito mais próximos delas como assistentes sociais, psicólogos e médicos no postinho de saúde do seu bairro ou na Secretaria da Saúde do seu município. Essa informação é importante. Eles são treinados e especializados para fazer um acolhimento humanizado da mulher e da sua família. Muitas vezes, o suporte psicológico e da assistência social já pode provê-la de ferramentas emocionais para resolver seu problema e para se fortalecer e se posicionar diante da situação.
Como mulher e médica dedicada ao cuidado das mulheres, sonho, como devem sonhar todos os profissionais que dedicam sua vida ao combate desse tipo de violência, que as gerações futuras não precisem de um “agosto lilás” porque esse enfrentamento será, então, obsoleto e pertencerá ao passado.
Compartilhe esse texto e essa consciência. Fique atenta, não fique indiferente. Repita comigo: a proteção da mulher é da minha conta!
Lisiane Dossin Miotti é médica especialista em Mastologia, Ginecologia e Obstetrícia com formação na PUC-RS. Cursando especialização em Menopausa, Ciências do Bem-Estar e Longevidade nos EUA, onde vive há 5 anos.
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