Caxias do Sul 22/11/2024

A musicalidade das folhas de outono

Paul Verlaine nos ensina que a poesia, antes de mais nada, precisa soar bem aos ouvidos, em especial, os internos
Produzido por José Clemente Pozenato, 10/03/2021 às 16:10:13
Foto: Marcos Fernando Kirst

Na série de visitas que venho fazendo neste tempo de distanciamento social, usando o veículo das leituras, encontrei outro mestre querido: Paul Verlaine (1844-1896). Jean Richer escreveu sua biografia, num relato que daria uma série de filmes dramáticos.

Verlaine foi para mim um mestre da poesia, mais que das ideias. Sua lição principal se tornou quase um aforismo: “La poésie c’est de la musique avant toute chose” Em português: “a poesia é música antes de mais nada”. Foi com ele que aprendi que a poesia deve soar bem nos ouvidos, mesmo quando lida em silêncio. Foi seguindo essa receita que traduzi Petrarca, entre outros poetas.

Uma das marcas da poesia de Verlaine é o modo inebriante com que canta o outono. Talvez seu poema mais conhecido seja precisamente a "Chanson d’Automne”, que vários no Brasil já tentaram traduzir. Minha tentativa é esta:

Os soluços longos

Dos violões

Do outono

Dão-me uma dor

De um langor

No mesmo tom.

Não é tradução literal, mas que tenta reconstituir a “música antes de mais nada”, composta por ele.

Paul Verlaine, mestre da poesia

No livro Matrícula, do qual participei em 1967 com quatro poetas amigos, incluí um poema sobre o outono. Imaginem se não foi por influência de Verlaine!:

Pomares, torres e unhas

tudo amarelecendo;

é o sol de outono a chegar

é o abril pálido e sereno.

Estive em Paris num outono e fiquei encantado. Não sei se continua assim, mas as folhas de outono eram deixadas onde caíam, debaixo das árvores, ao longo dos bulevares e avenidas. Em memória de Verlaine, pensei na ocasião. Para ele, as folhas caídas, levadas pelo vento, fazem lembrar os dias que se passaram e, portanto, não devem ser eliminadas.

O charme das folhas secas em Paris, no outono

Em minha poesia reunida, publicada com o título de Mapa de Viagem (2000), incluí outro poema com o título de Outono. Nele retorno à lição verlainiana, fazendo uma reflexão sobre a vida. Como estamos às vésperas de um início de outono, tomo a liberdade de reproduzir aqui integralmente todo o poema.

OUTONO

Nos trópicos sem outono,

o outono é apenas rima

de abandono e sono,

é cartão de turista,

vangogue vão, mero tópico

de conversas, faits-divers e versos.

Sem outono, como vão

teus olhos claramente ver

como é uniforme o verão,

e cansativo seu verde sempre igual,

sem o tom das folhas que rodam

no giro das estações?

Como sabes, sem outono,

qual o rumo da vida?

Irás de surpresa para o reino

das sombras, não sabendo,

presa ingênua, do teu fim.

Ir para as sombras, sim,

mas sabendo pelo sinais

quando a hora se aproxima

dos frutos maduros e dourados.

E sabendo-se a hora,

poder concentrar-se no sumo

- como o fruto, o pão assado –

cientes de que tudo,

quando doura, ao limite

de si e de sua grandeza

é afinal chegado.

É a hora madura

em que a pessoa a si mesma saboreia,

sem afogo, em fogo lento,

que de ouro incendeia

os pomos do pomar

e a alma do almo corpo.

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao cinema, concorrendo ao Oscar

mail pozenato@terra.com.br

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