Em 1992, a Rainha Elizabeth II declarou que aquele ano deveria ser lembrado como o annus horribilis; afinal, diversos escândalos sacudiram a família real: a separação de Charles e Diana, o divórcio da filha Anne, a publicação de um livro onde Diana contava sobre o caso de Charles com Camilla Parker e, por fim, o incêndio no castelo de Windsor.
A expressão em latim parece ser mais verdadeira para refletir o 2020 nos Estados Unidos. A lista de problemas é extensa e intensa: pandemia, desemprego recorde, revolta contra o racismo e uma guerra fria com a China. Em recente pesquisa do instituto Pew, que mensurou a satisfação da população com o estado atual do país, 87% afirmaram estarem insatisfeitos com o estado das coisas e a palavra que melhor traduz essa insatisfação é raiva.
O que mais está doendo e provavelmente explique esse sentimento de raiva é ver o mais poderoso e rico país do mundo perder a guerra contra a pandemia, sendo neste momento a nação com o maior número de vítimas, se aproximando de 145 mil. Colocando este sombrio número em perspectiva histórica, são quase três vezes o número de vidas americanas perdidas no conflito do Vietnã, que tanto ainda assombra a memória desta nação.
Quando olharmos o ranking do número de vítimas per capita, não conforta em nada a 7ª colocação, apesar de o presidente ter afirmado que o país tem a menor mortalidade per capita do mundo numa entrevista no último final de semana. O pior é que as tendências das últimas semanas são apavorantes, principalmente nos estados da Flórida, Texas e Califórnia, que viram o número de casos dispararem e os leitos de UTI chegarem à sua capacidade máxima em diversos hospitais.
Uma polêmica em torno da pandemia tem estremecido ainda mais o clima por aqui: a Casa Branca promoveu uma campanha midiática para difamar o médico imunologista e cientista que coordena os esforços federais contra a Covid-19, Dr. Anthony Fauci. Um dos conselheiros mais próximos do presidente, Peter Navarro, publicou um editorial no jornal de circulação nacional, o USA Today, criticando o cientista, dizendo que ele errou em tudo na condução do combate à pandemia. A Casa Branca circulou uma lista de equívocos do Dr. Fauci para a mídia.
Dr. Fauci, um pequenino senhor de 79 anos, filho de imigrantes italianos, com uma energia e uma clareza de raciocínio mais que privilegiadas, é considerado um ícone e herói nacional na área da saúde, principalmente pelas campanhas de combate à AIDS e ao Ebola. Dr. Fauci lidera o Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas há mais de 35 anos e serviu sete presidentes.
Parte dessa querela entre a Casa Branca e o Dr. Fauci se deve ao grande debate sobre se as escolas devem abrir em agosto, quando se inicia o ano letivo por estas terras. O vice-presidente declarou que as escolas devem abrir independentemente da opinião dos profissionais da saúde e a secretaria de imprensa da Casa Branca disse, categoricamente, que a ciência não deve parar a abertura das escolas e que é perfeitamente seguro as crianças voltarem, algo não alinhado com Dr. Fauci e com a grande maioria dos profissionais da saúde, que defendem uma postura de abrir as escolas de maneira cautelosa, respeitando os protocolos quanto à utilização de UTIs e graus de transmissão da Covid-19.
Críticos do Presidente Trump afirmam que a campanha contra o Dr. Fauci é puro ciúme porque ele quebrou a regra número 1 da Casa Branca: não faça sombra ao presidente. Uma pesquisa da revista Politico parece ter sido a gota d’água ao afirmar que 62% dos eleitores consideram que o Dr. Fauci está fazendo um excelente ou bom trabalho, enquanto apenas 36% responderam o mesmo para Trump. Importante dizer que americanos adoram medir tudo; levei pouco tempo para descobrir que números são mais importantes que argumentos, neste país.
Presidente Trump e Dr. Anthony Fauci
O governo Trump promove uma desnecessária divisão binária entre política e ciência, deixando a população insegura e forçando-a a escolher um lado; 76% dos democratas acham que a Covid-19 é um grande problema e apenas 36% dos republicanos pensam o mesmo, de acordo com o Instituto PEW.
O tema que provavelmente gera a mais desnecessária divisão é quanto ao uso de máscaras. Desde o anúncio pelo CDC, em 3 de abril, de que máscaras deveriam ser usadas, a postura do presidente é, no mínimo, de uma ambiguidade assombrosa. É sabido que as máscaras são a forma mais eficiente de termos uma volta às atividades corriqueiras da vida e que salvam vidas.
Estudo publicado pelo MIT estima que 40 mil vidas, isso mesmo, 40 mil, teriam sido poupadas nos dois primeiros meses da pandemia se o uso de máscara fosse mandatório. O presidente preferiu transformar isso numa briga entre os pró e os contra máscaras e usa mensagens dúbias e confusas. Novamente, divide ciência e política ao repetidamente ridicularizar seu oponente democrata Joe Biden por ele usar máscara. Afirmou que máscaras não combinam com presidentes, ditadores e monarcas, colocando-se acima de todos. Mas, segundo a Casa Branca, o presidente não tem necessidade de máscara, pois ele é testado diversas vezes por dia, apesar de estarmos passando por uma crônica falta de testes.
Questionado sobre a importância do uso das máscaras, afirmou: “As pessoas tocam e pegam nelas, então, depois tocam os olhos e narizes. Máscaras são uma faca de dois gumes”. Várias vezes ele disse que o uso da máscara é voluntário e que não usaria. Para piorar, fez dois comícios no meio da pandemia em ginásios fechados, durante os quais não usou máscara e os seus adeptos tiveram de assinar um termo de consentimento declarando que não iriam processar o presidente em caso de contraírem a Covid-19 no comício.
Jornalistas foram insultados no comício por serem acusados de instalar o medo no país, pois usam máscaras. Por sinal, essas cidades em que houve o comício viram os números dispararem nas semanas seguintes. Finalmente, na semana passada, 11 de julho, ele usou máscara pela primeira vez ao visitar um hospital exatamente 100 dias após o anúncio do CDC quanto à necessidade de usar máscara.
Mas, o mais bizarro foi a declaração que deu no início deste mês ao canal de TV Fox News: “Na verdade, eu usei uma máscara. Eu até gostei do jeito que eu fiquei. Era uma máscara escura, uma máscara preta, parecida com a do Zorro”. Nas minhas memórias de assistir o Zorro quando criança, apesar de serem antigas, tenho claro que ele não usava máscaras na boca e nariz, mas nos olhos.
Mas, qual a razão da postura de Donald Trump? Ele está usando a retórica mais comum do populismo, que é “o bom versus o mau”, difamando seus oponentes e desdenhando das instituições. Ele explora a obsessão com o individualismo e a interpretação equivocada da liberdade pessoal originada na constituição americana.
Como dizem especialistas jurídicos, a liberdade individual não é ilimitada, não temos liberdade de fazer coisas que prejudiquem o próximo. Questionamentos similares foram feitos ao Supremo quanto à vacina obrigatória, ao uso do cinto de segurança e ao uso do cigarro em locais fechados, e, com o tempo, se mostraram infundados de atacar a liberdade individual. Mais de uma vez, no supermercado que frequento, me senti julgado por pessoas sem máscaras, olhando para mim como se fosse o inimigo. O verdadeiro inimigo, que deveria ser comum, está ali, solto e invisível no ar.
Apesar de parte das autoridades, como o cirurgião-chefe da Casa Branca, apelar no canal de TV preferido dos fãs do Presidente Trump, dizendo: "Estou implorando aos seus espectadores, estou implorando, por favor, entenda que não estamos tentando tirar suas liberdades quando dizemos para usar máscaras”, os números mostram a efetiva divisão pregada pelo presidente, que aponta que 94% dos eleitores democratas dizem usar máscaras sempre ou quase sempre quando saem de suas casas e apenas 46% dos republicanos dizem o mesmo, segundo pesquisa do Gallup. Esta dicotomia do uso da máscara parece ser uma patologia única aos Estados Unidos.
Dr. Fauci abrindo a temporada da Liga de Baseball, no dia 24 de julho de 2020
O maior erro de Trump como presidente foi ter colocado a política acima da ciência e o resultado das eleições acima da vida. O escritor Irlandês Fintan O’Toole escreveu recentemente que, nos últimos 200 anos, os Estados Unidos causaram diversos sentimentos contraditórios no resto do mundo: amor e ódio, medo e esperança, inveja e desprezo, temor e raiva. Mas, agora, uma emoção jamais vista: pena.
Acredito que este país, apesar de estar ferido, acuado e dividido, deve olhar para o que fez no passado para enfrentar seus momentos mais difíceis, e que não foram poucos, como a Guerra Civil (1861-1865), a Grande Depressão (1929-1933), as Grandes Guerras (1914-1918 e 1939-1945) e o 11 de Setembro (2001). Sempre, nesses momentos de profunda crise, o país saiu delas com um exame profundo na sua consciência e com novos líderes que conduziram a um retorno às virtudes pregadas pelos pais fundadores e que construíram essa incomparável nação. Os Estados Unidos precisam voltar a ser um modelo para o mundo e, dessa maneira, ser o que prega o verso do seu hino nacional: a terra dos livres e lar dos bravos.
Gustavo Miotti, economista, sócio da Soprano e doutorando do Rollins College (Winter Park, Florida), onde pesquisa atitudes relativas à globalização nos EUA e China.
gmiotti@rollins.edu
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