Entre tantos outros fatores de igual relevância, o binômio arte-e-cultura figura como um dos principais, fundamentais e indispensáveis instrumentos para o contínuo processo de crescimento de uma nação, de um povo, de uma comunidade. Não existe desenvolvimento econômico (e social, e humano, e coletivo, e individual) sem que haja uma concomitante e perene aposta no fomento às manifestações artísticas e culturais que emergem de forma espontânea, livre e desimpedida no seio da população, sem amarras, sem dogmas, sem delimitações, sem preconceitos, sem impeditivos, sem tutelas, sem enquadramentos autoritários, burros e retrógrados.
Povo livre, feliz, proativo, desenvolvido, é aquele que defende a manifestação e o acesso às artes e à cultura como um bem e um direito inalienáveis dos cidadãos, equivalente aos seus direitos à vida, à segurança, ao trabalho, à saúde, à educação, ao alimento, à moradia, ao lazer. Simples assim: quem julga que arte e cultura são dispensáveis, está carimbando passaporte para o sombrio e irremediável universo do atraso, das trevas, da tristeza, da opressão. Arte e cultura libertam, educam e formam. Requerem que as defendamos de forma determinada, contínua e inarredável.
Uns poucos anos atrás, concretizei o sonho de passear pelas hipnóticas alas da National Gallery de Londres (sim, nós, esforçados trabalhadores brasileiros, das empregadas aos jornalistas, também cultivamos sonhos lícitos decorrentes de nosso suor diário, como os de ir para a Disneylândia ou para uma galeria de arte na Europa) e ali, em meio às telas imortalizadas pelas tintas e pinceis de artistas consagrados, deparei com uma cena inesquecível e sintomática. Sentados em semicírculo defronte à tela “As Meninas”, uma das mais afamadas do artista plástico espanhol Diego Velázquez (1599 – 1660), um grupo de cerca de 30 estudantes, na faixa etária de uns 8 ou 9 anos, escutava atentamente as explicações que a professora compartilhava a respeito da vida e da obra do pintor. Esperto e curioso, aproximei-me para “roubar” as explicações da educadora sobre a tela, à qual minha aproximação era impedida pela muralha de pequenas cabecinhas e ouvidos atentos. Ao encerrar sua explanação, a professora indagou se alguém tinha alguma pergunta a fazer. E imediatamente três dezenas de bracinhos ávidos por informação alçaram-se ao ar, disputando a primazia da primeira pergunta. Ou seja: todas aquelas crianças em idade de alfabetização cultivavam questionamentos a serem feitos a respeito da vida e da obra do importante artista. Cada uma delas, em seu íntimo, já alimentava o benéfico germe da curiosidade estética, da relação pessoal entre si e o belo, e a arte, e a cultura.
Frente àquele quadro pintado pela vida real, fiquei refletindo sobre que tipo de cidadãos futuros estava sendo moldado ali, entre aquelas crianças inglesas que tão cedo têm acesso ao suprassumo da arte universal, em contraponto a nossos batalhadores pequenos meninos e meninas brasileiros que precisam angariar as forças de seus bracinhos para driblar fome, violência, desamparo, deseducação, preconceito, falta de perspectiva, pobreza, esquecimento, insensibilidade social, governamental e humana. Anos-luz separam nossas crianças daquelas inglesinhas que se deleitam com Velázquez.
Pergunto: até quando?
Respondo: assim será até quando seguir existindo no Brasil pelo menos um vereador, pelo menos um prefeito, pelo menos um secretário municipal, pelo menos um deputado estadual, pelo menos um governador, pelo menos um secretário estadual, pelo menos um deputado federal, pelo menos um senador, pelo menos um ministro, pelo menos um presidente da República, que siga acreditando que arte e cultura são elementos dispensáveis no escopo das necessidades básicas da população. Corpo alimentado sem alma alimentada é bicho que não emerge do reino animal. No Brasil, estamos longe de alimentar qualquer um dos lados da equação. Seguir na boa batalha em defesa da manifestação e do acesso à arte e à cultura é um dos propósitos vitais e definidores deste site. Aqui, só não temos tolerância com a intolerância, com o totalitarismo, com o preconceito, com o fascismo e com a violência, de todas as ordens. Aqui, cultura e arte têm a devida primazia que lhes cabe, porque, sem elas, não existe nenhuma forma de desenvolvimento.
* Marcos Fernando Kirst é jornalista e escritor.
e-mail: marcos.kirst@gmail.com