A frase do Barão de Itararé pode ser politicamente incorreta, como era do feitio do seu humor, que começava com a frase na entrada de sua sala de trabalho: “Entre sem bater!”. Mas também marca com força uma tradição cultural brasileira.
A cachaça, ou aguardente de cana-de-açúcar, vincula-se a essa tradição desde os albores da colonização portuguesa, no século XVI. A cana-de-açúcar foi introduzida na Europa pelos árabes, via Andaluzia, e no século XIV era já cultivada em todo o Mediterrâneo.
Os portugueses a levaram para a Ilha da Madeira e as primeiras mudas, oriundas de lá, chegaram ao Brasil em 1502. Isto mesmo: dois anos depois do descobrimento. Cinquenta anos depois, já havia numerosos engenhos de cana pelo litoral brasileiro, iniciando o ciclo econômico do açúcar.
Na antiguidade havia bebidas alcoólicas fermentadas, como o vinho e a cerveja. As aguardentes, produzidas por destilação, só vieram muito mais tarde, em data e local não totalmente precisos. O certo é que num manuscrito do início do século XIV descreve-se a destilação de aqua ardens, de onde o nome da aguardente.
Alambiques presentes na história do Brasil desde o início da saga do descobrimento
O imigrante italiano teria conhecido a cachaça no navio em que vinha para o Brasil. Essa é a versão que dou em meu romance “A Cocanha”. O regulamento das companhias de transporte naval previa a distribuição de “aguardente” aos adultos nos domingos e dias santos. Não era definido que tipo de aguardente, mas por que não poderia ser a cachaça?
O certo é que, ao chegarem ao Brasil, a cachaça foi uma forte tentação, tendo dado origem a uma série de conflitos nas colônias italianas. Paolo Rossato, em carta à família, já se referia a ela como a bebida mais comum no Campo dos Bugres.
O vale do Rio das Antas, com menor incidência de frio, foi utilizado desde o início da imigração para o cultivo da cana-de-açúcar, que já integrava a produção agrícola do Rio Grande do Sul desde, pelo menos, a chegada de açorianos, em 1742. Tanto os imigrantes italianos ali estabelecidos, como os poloneses, dominavam as técnicas de destilação.
Nas colônias italianas, a destilação era de conhecimento generalizado para a produção da graspa (designação da grappa em Talian), obtida pela destilação do bagaço da uva, um subproduto da fabricação do vinho. Os alambiques, por sua vez, eram também produzidos localmente, por artesãos funileiros.
A imersão da cachaça na cultura regional pode ser documentada com uma canção, composta em Antônio Prado, com o título de Caciassa caninana, e recolhida em inventário realizado pelo Projeto ECIRS da UCS.
Cachaça é produto integrante da cultura regional
É uma longa canção em Talian, na qual se mescla o desejo de beber cachaça com a condenação desse hábito. Para dar uma pequena amostra, vão aí alguns versos, já traduzidos:
Cachaça caninana
chamada a assassina;
mas é a melhor caninha,
conhaque nacional.
Foi o diabo que inventou
essa bebida potente
para assassinar a gente
para a gente embriagar.
Não sei por que se bebe:
esse é um vício maldito
ela queima a boca e o peito
o estômago e o intestino.
Em remédio o Senhor a muda
para servir de medicina
quando se tem dor de cabeça,
de goela, pescoço, barriga.
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado "O Quatrilho", que foi adaptado ao cinema, concorrendo ao Oscar.
pozenato@terra.com.br
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