É crença comum de que não existe lembrança mais persistente do que a dos “sabores de infância”. Sabores no sentido literal, ou bucal. Aqueles que ficam registrados para sempre no aparelho gustativo. Aparelho cheio de truques e segredos, como aprendi de um sommelier, porque nele convergem todos os sentidos do corpo, mais a imaginação e a memória.
É somando todos esses registros que recordo a cozinha de minha mãe, onde entrava atraído, de manhã cedo, pelo cheiro quente do café sendo torrado numa panela de ferro. Vinha a seguir o som do café tornado pó no moedor manual, enquanto subia da frigideira o cheiro do “açúcar queimado”, que iria ser acrescido ao café para complementar o seu gosto.
O “açúcar queimado” era feito com açúcar amarelo, como chamávamos o mascavo. Depois de ficar escuro, era despejado numa tábua até esfriar e endurecer. Era então moído com um rolo de madeira e acrescentado ao pó de café, para dar a ele um tom de amargo.
Outro aroma, de quase todas as manhãs, era o do cuscuz. Como ajudante de minha mãe, aprendi também a fazê-lo. Punha-se farinha de milho numa bacia, com uma colher de açúcar amarelo e um pouco de água para “engrossar a farinha”, sem fazer dela uma massa. A farinha umedecida ia para o cuscuzeiro, um vaso de barro com furinhos no fundo. O cuscuzeiro era posto dentro de uma panela com um pouco de água. Para o vapor da água não sair pela junta do cuscuzeiro com a panela, ela era bloqueada com massa crua. A panela era então colocada ao fogo, na chapa do fogão, e ficava fervendo até o cuscuz ficar cozido, pronto para ser comido com o café da manhã.
Outro prato feito de milho era a canjica. Há vários modos de se fazer canjica pelo Brasil afora. A de minha mãe seguia a seguinte receita: debulhar algumas espigas de milho amarelo, de grão arredondado; despejar o milho no pilão, que era feito de um tronco de madeira, escavado por meu pai; sobre o milho, desfiar a palha das espigas e respingar um pouco de água para umedecer; aí, pegar a “mão de pilão” e ficar socando até os grãos do milho soltarem a casca: os grãos não se quebravam por causa da palha com que eram socados. Não é preciso dizer que bati mão de pilão muitas vezes, em rodízio com minha irmã, porque dava para cansar.
Feito isso, a canjica ia para a panela para ser cozida. Quase sempre, ela era dividida em duas panelas, uma temperada com sal e outra temperada com açúcar: almoço e sobremesa.
De milho era também a pamonha, da qual me tornei especialista. Sendo feita de milho verde, minha mãe plantava “milho pra pamonha” por quatro meses seguidos, de agosto a novembro. Com isso, a gente podia fazer pamonha também por quatro meses a fio.
Modo de fazer a pamonha: fazer um corte circular na base das espigas para poder descascar deixando as palhas inteiras; ralar espiga por espiga no ralador, dentro de uma bacia, para não se perder o suco do milho; temperar com sal a gosto, ou açúcar, se preferir; embrulhar o milho ralado e temperado nas palhas verdes e amarrar o embrulho com tiras da mesma palha verde; ferver numa panela até a pamonha ficar cozida.
Na linha de comidas feitas de massa, minha mãe tinha uma verdadeira linha de montagem: massa cozida, pão de milho, pão misto, pão de trigo, bolachas e até mesmo cucas. Com o tempo, percebi que ela seguia nesse ponto diversas tradições culinárias. A massa cozida, que depois aprendi a chamar de taiadèle, tinha origem italiana, por parte de meu pai, como também o pão de trigo. O pão de milho era tradição da família de minha mãe, que vinha de Santo Antônio da Patrulha. As bolachas e cucas eram da tradição alemã, com receitas ensinadas por uma vizinha, a dona Carolina.
Da farinha de mandioca, minha mãe só fazia paçoca, que em Caxias do Sul aprendi a chamar de farofa. Ela se negava a fazer pirão dessa farinha. Até já escrevi isso nalgum lugar: minha mãe aprendeu desde menina a dividir o mundo entre os comedores de paçoca e os comedores de pirão. Estes eram pescadores que moravam na beira do mar. Os da paçoca eram agricultores que plantavam arroz, milho, trigo e feijão. E mandioca.
Ela até nos contava uma historinha trazida de Santo Antônio. Uma vez, pouco depois do meio-dia, quando a família já tinha almoçado, chegou um viajante que vinha das praias, morto de fome. A dona da casa ofereceu a paçoca que tinha sobrado e o viajante recusou: não comia “engasga gato”, mas aceitava um pirão, se tivesse. “Aqui não se come cocô de gato”, foi a resposta que teve de ouvir. A contragosto, já que estava faminto, ele aceitou comer paçoca. E não se engasgou!
A paçoca preferida de minha mãe era feita com charque picado. Mas podia ter variações, conforme o que houvesse na despensa.
A farinha de mandioca era também usada para fazer o “feijão mexido”, que em outros lugares é chamado de “virado de feijão”, “tutu de feijão”, entre outras designações, o que mostra o quanto essa prática era generalizada. Estudos dão conta de ser essa uma tradição vinda do tropeirismo. São Chico, e também Santantonho (como minha mãe chamava Santo Antônio da Patrulha), foram importantes caminhos de tropeiros.
Nosso feijão mexido era feito com sobras de feijão, temperadas com o que houvesse à mão. Na frigideira punha-se uma colher de banha de porco, fritava-se nela charque ou linguiça em pedacinhos e, depois, despejava-se sobre ela o feijão cozido. Quando o feijão estivesse aquecido, punha-se a farinha de mandioca, mexendo até se formar uma pasta. Um ovo frito, ou estrelado, como a gente dizia, era o acompanhamento. Não havia janta melhor do que essa.
As verduras não faziam parte de nosso cardápio, pelo menos não em forma de salada, que só aprendi a comer depois de me mudar para Caxias do Sul. Mas minha mãe preparava “verdura cozida”, bem temperada e bem saborosa. Também, para quem comia feijão todos os dias, com exceção dos domingos, não havia necessidade de salada.
Fiquei feliz no dia em que foi divulgada a notícia de que uma pesquisa, realizada numa universidade norte-americana, tinha chegado à conclusão de que o feijão é “um alimento completo”. Isto é, aglutina todas as substâncias necessárias ao reabastecimento do corpo, em todos os seus sistemas: digestivo, nervoso, sanguíneo e tudo o mais.
O fato de ele estar na mesa toda a semana não nos provocava nenhum fastio. Tanto que um irmão meu costumava cobrar no almoço de domingo, em tom brejeiro, onde estava o feijão.
O domingo era dia de comermos galinha ao molho com massa. E, de sobremesa, arroz doce com canela, ao qual meu pai deu o nome de “prato do paraíso”
Sem querer parecer exagerado, todos os pratos que minha mãe fazia eram pratos do paraíso!
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
Da série “Memórias de São Chico”, leia outro texto AQUI