Quem leu minha novela policial O Caso da Caçada de Perdiz, ambientada nos campos da Vacaria, deve ter ficado no mínimo se perguntando em que se baseia o episódio do capítulo 9, que leva o título de “A coberta das almas”.
Se alguém imagina que foi tudo invenção do autor, está se enganando. A cena inteira é baseada em relato feito por uma moradora de Bom Jesus, conhecida como Dona Naná, colhido em 2003, por uma pesquisadora de campo. E em outras duas fontes, abaixo denunciadas...
Entre os ritos de passagem da vida para a morte, e suas respectivas crenças, um ritual que esteve presente na região dos Campos de Cima da Serra foi o da Coberta da Alma - com a pronúncia local de “coberta d’alma”. Segundo esse “costume antigo”, a alma de quem morria devia ser “coberta” com uma roupa dada a uma pessoa necessitada, para poder aparecer vestida onde quisesse aparecer.
Há também registro desse costume, feito por P. Correa (1965), no município de Osório, no Rio Grande do Sul. Observa Correa que não encontrou vestígio dele nos municípios da Fronteira e da Campanha. Isso indicaria que sua origem não é lusitana nem hispânica.
O mesmo pesquisador informa que, em 1935, no Primeiro Congresso de História e Geografia Sul Rio-Grandense, comemorativo ao Centenário da Revolução Farroupilha, o escritor Manoel Estêvão Fernandes Bastos (também natural de Osório, onde é hoje patrono da Biblioteca Pública Municipal) apresentou trabalho sobre a “Coberta d’Alma”, com as seguintes conclusões, que constam dos Anais do evento:
“1 - A Coberta d’Alma é uma tradição açoriana.
2 - Essa tradição envolve, encantadoramente, um ato de piedade cristã.
3 - Pela sua piedosa significação e pela moralidade de seu alcance, esse costume deve ter influído na nossa formação social”.
No caso do depoimento obtido em Bom Jesus, a informante diz que seu pai – que obedecia ao ritual dessa crença – era natural dos Ausentes. Mas é sabido que muitos hábitos culturais de origem açoriana, vindos do litoral, subiram até os Campos de Cima da Serra, seguindo o Caminho das Tropas.
Mesmo admitindo-se a fonte açoriana para essa tradição cultural, deve-se notar, no entanto, que ela aparece aqui relacionada, ou mesclada, com crenças típicas do ocultismo.
Do depoimento de Dona Naná, a informante de Bom Jesus, conclui-se que diversas são as condições para que o ritual da Coberta da Alma produza seus efeitos:
- a roupa dada em nome da pessoa falecida deve ser completa, incluindo as roupas de baixo e o calçado;
- deve ser uma roupa nova ou, pelo menos, bem conservada;
- deve ser dada a uma pessoa merecedora, não só pela pobreza, mas também pelos bons costumes;
- a doação deve ser feita até o dia do “terço dos sete dias”, para que, nessa ocasião, a pessoa beneficiada compareça vestindo a roupa dada.
Em sua forma original, o depoimento de Dona Naná fornece detalhes com este colorido:
“Uma vez tinha a coberta d’alma. Se por acaso eu morresse, faziam uma roupa nova e davam tudo pra uma pessoa que aceitasse, né. Uma pessoa pobre. Mas faziam tudo completo, tudo. Sutiã, saia, calcinha, tudo completo. Fosse de morim, fosse de chita, mas era tudo. Aquela era a coberta d’alma, que eles diziam. O calçado também. Era tudo. Se a pessoa tinha uma roupa boa, não carecia comprar. Então a gente arrumava bem, passava bem passadinha e dava aquela...
Mas tinha que ser uma coisa boa... Não assim trapo velho, roupa velha. Porque diziam, não sei se é certo, que com aquela roupa que a gente dá é que a pessoa aparece. Se ela vai aparecer no céu, ou onde aparece aquela alma, é com aquela roupa que a gente dá. Com a outra veste não, com aquela que é enterrada. Assim diziam, não é. Agora só estou dizendo o que os antigos diziam”.
“Há mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia”, já ensinava William Shakespeare.
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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