Na cata de personagens italianos na literatura brasileira, vamos agora a Machado de Assis.
Embora ele tenha vivido numa época em que levas de italianos passavam pelo porto do Rio de Janeiro, e embora ele trabalhasse no Ministério da Agricultura, órgão do governo responsável pela imigração, inclusive na época dos que vieram para o Sul do Brasil, não há nos escritos de Machado nenhuma referência a esse fato.
Os italianos que aparecem nos seus romances e contos, sempre como coadjuvantes, obedecem a outro estereótipo, bem diferente do de Alencar (leia texto AQUI). Atrizes, cantoras e diversos tenores de ópera, espalhados aqui e ali, ajudam a construir as cenas de suas narrativas.
A figura mais vistosa deve ser a cartomante do conto de mesmo nome, com este perfil mais cheio de detalhes: “era uma mulher italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos”.
Ela chama Camilo, o consulente, de ragazzo innamorato, em italiano culto. Tem “longos dedos finos, de unhas descuradas”, e quando se põe a comer um cacho de uvas, mostra “duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas”. O detalhe do cacho de uvas é bem curioso... E, como Alencar no seu Loredano, Machado admira os dentes dos italianos, brancos, completos. Para concluir, na despedida, alegre com a paga, a cartomante canta uma barcarola “lenta e graciosa”.
Machado de Assis
Em Histórias da Meia-noite há um extenso conto, “As bodas de Luís Duarte”, em que Machado de Assis não deixa escapar um detalhe da festa, desde a limpeza da casa até o brinde final. Para compor o cenário elegantíssimo, são colocadas na parede duas gravuras de procedência italiana, “compradas na véspera em casa do Bernasconi; uma representava a Morte de Sardanapalo; outra a Execução de Maria Stuart”. As duas vão dar muito assunto para as conversas dos convidados...
Há um frei capuchinho italiano, do qual não é registrado o nome (provavelmente se trata de uma personagem real), em Esaú e Jacó. Ele é largamente desenhado, e com simpatia:
“...um capucho, um italiano, frei***. Podia escrever-lhe o nome, - ninguém mais o conheceria, - mas prefiro esse sinal trino, número de mistério, expresso por estrelas, que são os olhos do céu. [...] O pé nu, atado à sandália, mostrava aguentar um corpo de Hércules. Tudo isso meigo e espiritual, como uma página evangélica. A fé era viva, a afeição segura, a paciência infinita. [...] Ia ao interior, Minas, Rio de Janeiro, São Paulo, - creio que ao Paraná também, - viagem espiritual, como a de outros confrades”.
Uma personagem à qual a crítica atribui vinculação com a cultura italiana é nada menos que Capitu, a heroína do romance Dom Casmurro. Ela se chama Maria Capitolina, de onde o seu apelido. E Capitolina seria um derivado da Colle Capitolina de Roma: ou seja, o monte Capitólio, onde foi sepultada Tarpeia, também suspeita de traição, como Capitu...
Depois de Machado, entra em cena o romance naturalista, com Aluísio Azevedo como principal figura. Em O Cortiço, ele desenha seus personagens com base na observação direta, de acordo com o critério orientador da escola naturalista.
Aluísio Azevedo
Nesse romance, ele põe em cena grupos de trabalhadores italianos anônimos, como neste enquadramento:
“um grupo de italianos, assentado debaixo de uma árvore, conversava ruidosamente, fumando cachimbo”.
Isso num domingo. Numa outra cena, refere:
“o jantar de um grupo de italianos mascates, onde o Delporto, o Pompeo, o Francesco e o Andrea representavam as principais figuras. Todos eles cantavam em coro (...); quase, porém, que se lhes não podia ouvir as vozes, tantas e tão estrondosas eram as pragas que soltavam ao mesmo tempo”.
E ainda:
“lá fora o coro dos italianos se prolongava numa cadência monótona e arrastada, em que havia muito peso de embriaguez”.
Parece agora claro que aí estão presentes, pela primeira vez na literatura brasileira, os imigrantes italianos que vieram em massa para o Brasil no final do século XIX. E é claramente visível também o estereótipo: se juntam em grupo, conversam em voz ruidosa, cantam em coro, blasfemam e bebem.
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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