Por José Clemente Pozenato
Nestes tempos de retiro geral, uma compulsão quase incontrolável é a de escarafunchar o fundo do baú. Até a televisão está fazendo isso, com filmes, grupos musicais, jogos de futebol e outros feitos trazidos à tona da memória.
A minha compulsão é a de mexer com antigos escritos, e confesso que até eu mesmo me surpreendo com o que encontro, ou reencontro. Um desses achados foram as anotações que fiz sobre a presença do queijo na mais alta antiguidade. E num dos mais consagrados escritos do planeta: a Odisseia de Homero.
A produção e o consumo de leite, queijo e manteiga como alimentos estão presentes nos mitos de origem de várias culturas. Se a história da cultura pode ser dividida em três estágios, nos seus inícios – o dos povos coletores, o dos povos pastores e o dos povos agricultores – o leite como alimento situa-se no estágio de passagem entre o nomadismo total, dos coletores, e o da fixação permanente num território para o cultivo agrícola. Mas, também neste terceiro estágio do cultivo da terra, o leite e seus derivados continuarão tendo lugar importante.
Homero, poeta grego que teria vivido no século X ou IX antes de Cristo, é particularmente explícito sobre a produção de leite e queijo quando narra a história de como viviam deuses e homens na Grécia clássica. Na Odisséia, Homero talvez nos tenha dado a primeira descrição literária do que seriam hoje o galpão, a mangueira, a ordenha e uma queijaria.
Em seu périplo de volta para casa, Ulisses encontra o ciclope Polifemo. É um gigante pastor que ordenha cabras e ovelhas, no seu estábulo, duas vezes por dia: de manhã e à tarde. O leite que sobra da mamada dos filhotes ele o divide em duas metades: de uma delas faz queijo, da outra faz sua janta.
Vai a seguir uma tradução livre:
“Para dentro da caverna espaçosa Polifemo levou o rebanho que pretendia ordenhar, deixando de fora, num pátio cercado, todos os machos: carneiros e bodes.
Logo depois se sentou, para tirar o leite das ovelhas e cabras e, como de costume, deixando cada uma com o filho de mama.
Pôs então para talhar a metade do branco leite e depois o espremeu nuns cestos tecidos com vime.
A outra metade guardou em vasilhas, para beber quando quisesse e, mais tarde, servir na ceia.”
Entrando na gruta de Polifemo, Ulisses vê esta cena:
“Os secadores de queijo se achavam repletos.
Cabritos e cordeiros apertavam-se no estábulo, todos bem separados: os mais velhos, os menores e, por fim, os recém-nascidos. De muitas vasilhas escorria o soro e havia tarros, e gamelas bem feitas, cheias de leite. Meus companheiros então me pediram para sairmos logo, levando uma porção desses queijos”.
Sempre é bom revirar o baú!
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado "O Quatrilho", que foi adaptado ao cinema, concorrendo ao Oscar.
e-mail: pozenato@terra.com.br