Caxias do Sul 23/11/2024

A arte de flanar

Andar a pé pelas ruas da cidade reserva surpresas e belezas a quem se dedica ao hábito
Produzido por Paulo Damin, 24/05/2022 às 07:49:09
Foto: ARQUIVO PESSOAL

PAULO DAMIN

O caminho das pernas supera o caminho das pedras. É que o caminho das pernas é interno, vai no ritmo do próprio fôlego. Andar a pé é a melhor maneira de evitar seguir os caminhos já traçados.

Quem anda a pé faz o próprio destino, literalmente, a cada passo. As pernas não precisam de petróleo ou de estacionamento. Não há muitos casos de acidentes pernísticos e, quando ocorrem eventuais tropeços, eles geram risos.

O tempo dos passos é o tempo do olho. Já se passaram séculos desde a invenção da velocidade e continuamos vendo e pensando melhor quando caminhamos lentamente. Na literatura, isso se consagrou pela figura do flanador (ou flâneur, como dizem os haitianos e senegaleses).

Basicamente, o flanador anda a pé pela cidade. Muitas vezes, a porta de entrada para esse hábito é a necessidade, mas a gente acaba se apegando às belezas que só podem ser vistas quando se anda à toa: uma janela, uma placa, um paralelepípedo particularmente paralelepípedo, uma árvore que solta perfume de madrugada, uma mulher cantando enquanto estende roupa.

Nem toda cidade se presta à flanagem: urbes modernas desfavorecem esse hábito porque não tem graça andar por calçada sem pedra solta e sem raízes rebeldes que invadem a rua. O ideal são ruas secundárias, com postes de luz amarela que cortam a cerração – uma noite daquelas que nos transportam para um poema do Mario Quintana dentro de um conto do Sergio Faraco.

Caxias, por exemplo, é uma cidade perfeitamente flanável. Sugiro um roteiro: comece no Cristo Redentor, cruze o Panazzolo e desemboque no Rio Branco. Ali há muitas ruas que não passaram por cirurgias plásticas para esconder suas rugas.

O flanador é contrário à revitalização, ele próprio sendo uma espécie fantasma. Mas ele é a favor de conservar, de dar margem para que a história continue. Um cenário revitalizado exige que se ande pisando em ovos, o que é a ruína do flanador.

Flanar é andar leve, mas firme, bem postado na própria aleatoriedade. Não é um passeio por um museu. É um passeio dentro da história que se esvai e que será musealizada apenas na mente errante do próprio flanador.

Paulo Damin é escritor e tradutor em Caxias do Sul.

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