Todos sabem que a faculdade da memória desempenha duas funções opostas: a de lembrar e a de esquecer. Pesquisas têm demonstrado que a faculdade de esquecer é importante para manter a agilidade da inteligência. O esquecimento impede que o arquivo de informações do cérebro fique demais abarrotado. É o que ocorre com o computador: ele fica lento quando acumula muitos dados na sua memória. Mas também pode acontecer que uma lembrança faça um link e provoque outra lembrança, esquecida no depósito.
Pois bem, foi o que sucedeu comigo. Depois de ter rememorado o drama do tráfico negreiro, lembrei-me de quando tive oportunidade de chamar a atenção para a presença do negro na história de Caxias do Sul. Isso aconteceu na Festa da Uva de 2006. Na época, como Secretário de Cultura do município, fui incumbido da tarefa de propor o tema da festa. E achei então que era um momento importante para a cidade prestar atenção na pluralidade cultural que vinha se tornando cada vez mais evidente.
Cartaz da Festa da Uva de 2006
Tomo a liberdade, imagino que sem ferir nenhum princípio ético, de tornar público o texto que escrevi, em maio de 2005, propondo o tema da Festa da Uva do ano seguinte. Vai ele a seguir, em transcrição integral:
Sobre o tema da Festa da Uva de 2006
1) Olmiro de Azevedo, na primeira divulgação da Festa da Uva, escreveu que o objetivo da Festa era: “mostrar o que somos e o que fazemos”.
2) A Festa da Uva sempre seguiu essa linha: mostrar, em cada fase de sua história, o que era a cidade e o que fazia.
3) Neste início de século e milênio, pode-se dizer que a característica mais marcante de Caxias do Sul é a pluralidade cultural em busca de harmonia.
4) A ideia central da próxima Festa seria portanto esta: PLURALIDADE CULTURAL EM BUSCA DE HARMONIA
5) De fato, desde a origem Caxias traz essa marca pluricultural, seja por seus primeiros habitantes, seja pela vizinhança com os Campos de Cima da Serra. Aí estão, onde era o Campo dos Bugres, primeiro Feijó Júnior com seus escravos e peões (que construíram o barracão dos imigrantes e a casa da diretoria da colônia), os tropeiros estabelecidos na Caipora (e que transportaram os imigrantes desde o Caí), as famílias alemãs (que introduziram o primeiro curtume), os funcionários, alguns deles intelectuais esclarecidos (que criaram um círculo de vida cultural na sede da colônia) e, por fim, os imigrantes italianos, que tiveram seu caminho aberto e preparado pelos que os precederam.
6) A proposta é de que no corso alegórico e na entrada dos pavilhões seja feita a recuperação desta pluralidade expressa nos primeiros povoadores de Caxias: o índio, o negro, o tropeiro, o colono alemão, o funcionário, o imigrante, nas suas facetas mais típicas.
7) A chamada para a festa seguiria dentro da mesma concepção. Podia ser, por exemplo: A ALEGRIA DE ESTARMOS JUNTOS, ou algo do tipo.
8) Feito este acerto histórico (e dos mitos de origem!), a Festa de 2006 poderá mostrar a trajetória da uva e do vinho em suas diferentes etapas.
O que aconteceu a seguir? A proposta foi aceita pela Comissão Comunitária daquele ano. O lema, A ALEGRIA DE ESTARMOS JUNTOS, foi musicado por Mário Michelon, numa canção que fez o maior sucesso, chegando a receber o Disco de Ouro concedido pela Gravadora ACIT, que também tem uma bela história.
Ouça a canção AQUI
O perfil da Festa da Uva, que por décadas teve seu foco na imigração italiana, a partir daí passou a celebrar nossa pluralidade cultural. Seguindo nisso a recomendação do poeta Olmiro de Azevedo, também ele um caxiense adotivo: “A festa deve mostrar o que somos e o que fazemos”.
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado "O Quatrilho", que foi adaptado ao cinema, concorrendo ao Oscar.
pozenato@terra.com.br
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