Nem precisamos recordar O bêbado e a equilibrista – e tudo mais que o Aldir Blanc fez com o João Bosco. O que ele fez com o Guinga, em 1993, é um aperfeiçoamento do “simples e absurdo” que haviam desenvolvido no álbum anterior, de 1991.
Delírio carioca é bom em diversos níveis. As vozes reunidas. Os instrumentistas. Os acordes que o Guinga inventou pra dar conta dos versos de um dos escritores mais malucos desta língua. É um banquete colorido, perfumado e de sabores raros.
A canção título do disco é um passeio maluco pelo Rio, com personagens da música e o Macunaíma de penetra: vai ver porque o espírito desse mito é o que guia o Aldir nessas viagens. As outras pérolas são Par ou ímpar, sobre um torturador nada arrependido, escondido na periferia; Nítido e obscuro, sobre os sentimentos contraditórios da paixão por uma mulher, com o transbordamento que ultrapassa a dimensão literal e terrena; Canção do lobisomem, a reflexão de um eu lírico monstro, que se humaniza pela autoconsciência e a coragem do gesto final; Catavento e girassol, uma lupa paradigmática sobre uma relação amorosa complicada; e Visão de cego, um retrato surrealista dos Brasis, que se torna viável graças a um sorriso escancarado – e aqui ocorre uma das rimas mais extraordinárias do cancioneiro brasileiro: trouxe – windsurf, nos versos “A saudade que eu trouxe / me faz ver Oxum de bermuda / me acuda! fazendo windsurf”.
O Aldir não poupava nada na hora de escrever. As brincadeiras bilíngues em Mise-en-scène são do tipo que não nos fazem rir, talvez porque não estejamos preparados pra esse gesto tão banal diante de um insólito tão complexo. O precioso tratamento da vulgaridade em Baião de Lacan é um pouco mais amigável, mas igualmente desconcertante: uma rima pra Massachusetts? Putz! E aquela oração chamada Age Maria, que supera a canalhice aparente do trocadilho ao desdobrar outros, em imagens de elevada beleza erótica? “Maria, ateu a teu lado / lanço em teu ventre / a língua que te consagre”.
Não sei se tem nome pra isso, mas o Aldir mostrou nesse disco que era bom também na hora de atribuir personalidade às coisas, tipo aos instrumentos musicais (instrumentismo?). Choro pro Zé é uma ode ao saxofone, que “me faz respirar / sempre que o amor / provoca em mim falta de ar”. E, em Viola variada, a personagem é a viola, ou violão mesmo, que pira e se liberta no Brasil Profundo, cenário inesgotável de poesia que o carioca delirante, psiquiatra e poeta, aproveitava com facilidade.
Falei apenas das letras dele, mas tem duas do Paulo Cesar Pinheiro, que é outro craque (se Saci e Passarinhadeira tivessem sido atribuídas ao Aldir, seria fácil acreditar). Quanto às músicas que viabilizam a leitura dos versos do Aldir, só consigo dizer que o Guinga encontrou melodias que se harmonizam perfeitamente com o insólito dos textos. Tanto é que fica difícil saber o que veio antes: música ou letra? É tudo tão coeso. Até a única música instrumental do disco, Henriquieto, parece contribuir pra facilitar o trânsito entre as referências dispersas nas letras.
Continuamos vivos em 2023. Parabéns. Um presente do Guinga e do Aldir Blanc pra todo mundo que tem a sorte de entender o português brasileiro.
Paulo Damin é escritor, professor e tradutor em Caxias do Sul.
Do mesmo autor, leia outro texto AQUI