POR MARÍLIA FROSI GALVÃO
Se... como uma viajante do tempo, pudesse estar tête-à-tête com Virginia Woolf, escritora inglesa, no dia 28 de março de 1941, gostaria de tranquilizá-la, dizendo que eu a perdoo por ter me feito mergulhar tão fundo em suas histórias. Há oitenta anos, ela mergulhou fundo no rio Ouse. Eu a perdoo por isto também.
Neste dia, despediu-se da vida, por não poder suportar uma nova guerra (viveu a primeira também), por ter perdido parentes, a casa bombardeada, por temer pela perseguição a seu marido judeu e, sobretudo, por estar abalada e deprimida. Inclusive, impedida de escrever, seu nome constava na lista negra de Hitler porque no livro – Três Guinéus – fez uma denúncia ao fascismo. Eu a perdoo. Ah, sim.
Com nove romances publicados e mais de trinta outros livros de outros gêneros, Virginia Woolf continua sendo uma das escritoras mais influentes da literatura mundial; revolucionou a narrativa do século XX e foi quem mais defendeu os direitos das mulheres através de seus textos.
Ah, Virginia Woolf. Minha escritora preferida. Pela leitura de parte de sua obra, ela me fez ter consciência da morte para ter consciência de meu tempo. Me instigou a buscar nas sombras do meu passado o entendimento de que as coisas não são como eu pensava. Me fez admitir que não conheço minha própria alma. (Muito menos a dos outros.) Me incitou a remexer no armário de minha mente e alterar o lugar das peças (diga-se lembranças). E que sou uma incerteza. E prosseguiu me influenciando nos temas sobre a persistência da vida. Me obrigou a refletir a respeito – Do que vivo? De onde tiro motivos para nova jornada? Do que preciso agora? O que me atém à vida? Se ... como ela diz, que cada dia é muito frágil, como encontrar um fio de leveza e continuar vivendo?
Adeline Virginia Stephen nasceu em Londres, em 25 de janeiro de 1882. Era filha de Leslie Stephen e de sua segunda esposa Júlia Prinsep Jackson. O pai era editor, escritor, historiador e biógrafo. Assim, Virginia cresceu sob as influências da sociedade literária vitoriana.
Enquanto seus irmãos e meio-irmãos dos casamentos anteriores de seus pais estudavam em Cambridge, a menina Virginia estudava em casa, com professores particulares, além de seu pai. Isso a desagradava profundamente. Porém, ela desfrutou de uma vasta biblioteca particular, sem restrições. Desde cedo quis ser escritora – aos nove anos, escrevia um jornal domiciliar. Apesar de ter orgulho de ser autodidata, em sua obra futura, defenderia o direito de as mulheres terem acesso à educação formal e inclusive ao ensino superior.
(FOTO: Marília Frosi Galvão)
Gínia! Assim a chamavam os familiares. Gínia faz parte do meu viver. Desde jovem. Confesso que a lia, mas não a entendia. Hoje, penso ter adquirido uma certa maturidade ao compreendê-la, mas não é uma leitura fácil. É uma leitura de gozo. Não de prazer. Ou. O prazer vem depois do entendimento das descobertas, das experimentações literárias próprias do estilo dela, do que seja o fluxo de consciência, tão utilizado por ela, quando alterna fragmentos do real com monólogos interiores de seus personagens, emoções, sentimentos. Ao insistir nas leituras, e releituras, simplesmente, me apaixonei. Ah, sim, de verdade.
Em 1895, a mãe de Virginia faleceu, e ela tinha só treze anos. Por esse fato, ela sofreu o seu primeiro abalo emocional. Outros a acometeriam ao longo da vida. O segundo foi pela perda do pai, aos 20 anos. Nessa época, já havia escrito diversos ensaios e estavam preparados para publicação. O primeiro artigo foi publicado no suplemento feminino do jornal “The Guardian”. Em 1910, ingressou no Grupo de Bloomsbury – um círculo intelectual de artistas e escritores vanguardistas. No grupo, conheceu Leonard Woolf, com quem se casou em 1912.
A Viagem – The Voyage Out – publicado em 1915 – é o primeiro romance de Virginia. Do momento da ideia até a edição final, passaram-se nove anos. Veja bem, meu leitor e leitora – nesse tempo, muitas coisas aconteceram na vida de Virginia: a morte do pai, da meia-irmã e de um irmão. Saber disso me tocou e li com olhar sensível.
O que achei de interessante é o fato de que o romance se passa em algum lugar do Brasil, há poucas referências, “...levar mercadorias para o Amazonas e trazer borracha de volta” (para Londres, no caso). E, interessantíssimo, é-nos apresentada Mrs. Dalloway – futura protagonista de um dos seus livros mais famosos. Há força literária nesse romance. Se o leitor espera uma heroína em busca de casamento, Rachel tem algo muito maior, é encontrar um sentido para a vida e tomar decisões próprias. Isso me fascina. E o final é perfeito. Compreendi, então, a dimensão de uma viagem.
Virginia Woolf escrevia compulsivamente. Tornou-se, com o passar do tempo, escritora multi. Produziu romances, ensaios, críticas literárias, resenhas, contos, traduções, peças de teatro, deixou muitas cartas e diários, e há muito material ainda não traduzido para o português. Em 1917, junto com o marido, fundou a Editora Hogarth Press – a qual publicou grande parte da obra dela, toda a obra de Freud e de novos escritores como Katherine Mansfield (contos) e T.S. Eliot (poesia).
Mrs. Dalloway – publicado em 1925 -, esse me assombra, admito que a cada releitura capto novas imagens, novos cenários mentais. Narra em um tempo de doze horas em um dia na vida de Clarissa Dalloway – uma senhora da alta sociedade inglesa, que mora em Londres, no pós-Primeira Guerra Mundial.
Ela se prepara para a festa que dará à noite. Sai de casa para comprar flores. Enquanto caminha pela cidade, os mais variados pensamentos ocupam sua mente. E, nos fluxos de pensamentos e sentimentos também de outras personagens, a história se passa pelo futuro e pelo passado, por dentro e por fora das mentes. A leitura me deu a sensação de estar em um mar agitado. Respirei fundo, continuei nadando e cheguei a um horizonte surpreendente.
Orlando: A Biography – Orlando: uma biografia, de 1928 é, talvez, o mais original de Virginia Woolf. A trajetória de Orlando inicia no século XVI, aos dezesseis anos, e, no transcorrer de três séculos, envelhece apenas vinte anos. Realismo mágico. Porém, o mais importante relaciona-se com a metamorfose do personagem: naturalmente, adormece homem e acorda mulher – a figura feminina preenche o papel masculino com consciência de mulher. Virginia aprofunda esses sentimentos dando voz a seus personagens atuantes em seus gêneros. Nas discussões atuais, poder-se-ia identificar a questão da transexualidade. Constata-se o pioneirismo de Virginia. Por isso ainda é lida, relida e repensada nos dias de hoje.
Ao Farol – O Farol – To The Lighthouse – em 1927. Escrito em fluxo de consciência também, técnica literária que Virginia dominou. É a história de uma família – dos conflitos de gerações e relações familiares – remete a emoções de infância – é o mais autobiográfico. O livro sobre a vida da sua vida. “Esse foi, facilmente, o melhor dos meus livros” disse Virginia Woolf. Ao ler a segunda parte desse romance, eu chorei. Senti ódio e amor por um mesmo personagem, ódio pelas atitudes e amor por entender seus pensamentos. É. Chorei. Só lendo para captar o que podem ser dois dias com um intervalo de dez anos. “Escavo lindas cavernas por trás dos personagens; acho que isso me dá exatamente o que quero. A ideia é que as cavernas se comuniquem e venham à tona.” – registro de Virginia em um dos seus diários.
(FOTO: Marília Frosi Galvão)
Um teto todo seu – Na década de 20, do século XX, Virginia Woolf era considerada uma escritora de renome e fazia palestras em faculdades inglesas exclusivas para mulheres, defendendo com brilho a tese: “Uma mulher deve ter dinheiro e um teto todo seu se ela quiser escrever ficção”. (Um quarto, uma sala, um espaço livre de interrupções e tempo para se dedicar à escrita.) Este livro-ensaio Um teto todo seu – apresenta um painel da presença feminina na literatura, exalta as conquistas das escritoras do século XIX – as mulheres notáveis que ficaram nos porões da história. Penso que Virginia ficaria muito triste se soubesse que, hoje, oitenta anos depois de sua morte, ainda há discriminação da mulher na sociedade e na literatura.
Tanto na ficção quanto nos ensaios, Virginia arrebatou meu espírito. Há um que considero um verdadeiro tesouro (mais um) – é O valor do riso e outros ensaios – por ali segui as meditações da autora sobre romance, poesia, música, dramas femininos, retratos de mulheres ilustres e esquecidas, uma andança pelas ruas, enfim, tudo o que me extasia e me inspira a também escrever.
Oitenta anos hoje – o dia de sua morte – contudo, viva permanece em sua extensa, bela, rica, estonteante obra.
Depois de ler Virginia Woolf – façamos o que ela mesma ensina:
“Deixe que a poeira da leitura se assente; que o conflito e o questionamento se aquietem; caminhe, converse, tire as pétalas secas de uma rosa, ou então durma. Resta-nos dar uma sentença sobre essa infinidade de impressões; resta-nos transformar as formas efêmeras em outra que seja resistente e durável. Mas não de imediato. De repente, sem que o queiramos, pois é assim que a Natureza empreende suas transições, o livro irá retornar, mas de outro modo, flutuando até o topo da mente como um todo. E não somos mais totalmente nós”.
Se... como uma viajante do tempo... eu pudesse... eu lhe diria da minha intensa admiração pela sua obra e vida, agradeceria por jogar luzes em meu espírito... e ... bem baixinho, para que só ela me ouvisse – “também quebrei vidraças para poder respirar”.
Marilia Frosi Galvão é professora, escritora e cronista
galvao.marilia@hotmail.com
Leia sobre a relação entre o cinema e a vida e obra de Virgínia Woolf na coluna de EULÁLIA ISABEL COELHO, clicando AQUI