Por Marcos Fernando Kirst
Não é preciso viajar muito além das fronteiras de nossa aldeia para encontrar cronistas talentosos e sensíveis que saibam revestir em poesia e graça os pequenos dramas humanos que habitam o cotidiano da cidade. Às vezes, porém, vale fazer um passeio longe no passado, mas sem sair do lugar.
É assim que deparamos com esse saboroso, sutil e delicado texto de autoria de Aldo Mora, publicado um século atrás na capa do jornal caxiense A TRIBUNA, em 13 de setembro de 1920, intitulado “Delírio”. Mora desempenhava a função de secretário no jornal dirigido por Agnello Cavalcanti, e que circulava com suas quatro páginas às segundas e quintas-feiras.
Saboreie:
DELÍRIO
(Por Aldo Mora)
Fez-me curiosidade aquela figurinha esguia, esgalga, de enferma palidez delicada que, todas as tardes, passava sob a minha janela, humilde e apressada, desatendida do ambiente, de todos.
Nem bonita, nem feia, mas um tipo invulgar, fino, sem expressão terrena, exilado do paraíso...
Fez-me curiosidade... e, ontem, como ela me aparecesse num estranho fulgor, espiritualizada mais intensamente na sua palidez enferma e delicada, decidi acompanhá-la, ansioso por saber quem era aquela criatura com quem tanto a minha sensibilidade se preocupava...
Afigurou-se-me logo uma profanação segui-la, como quem segue uma mulher qualquer que nos desperta a volúpia, mas segui-a, segui-a, como se seguisse a minha própria alma, fugitiva, para o Mistério... Um pressentimento de que ela devia ser muito infeliz sangrou-me o coração, mas segui-a, arrastado por uma força estranha, na ânsia de tudo saber, amando-a, quase...
Já a luz do sol morrera completamente, o crepúsculo, dorido, harmonioso, descia à terra desfalecida na última carícia do Astro Rei; e ela, a misteriosa criatura caminhava, caminhava, humilde e apressada, desatendida do ambiente, de todos... Eu seguia-a, guardando distância, temendo que ela me visse, que a maculasse a minha curiosidade. Eleita do Martírio eu já a via, a sagrada, e o lírio florindo num jardim encantado, longe dos olhares profanos do mundo, Única e Intangível! Sonhava em plena realidade; via-a, desfeita em luz, subir, subir ao Infinito, deixando na terra uma estranha e eterna radiosidade!
Caminhava, caminhava, humilde e apressada, desatendida do ambiente, de todos...
Afinal, quase ao termo da longa rua, ela desapareceu, numa esquina. Apressei o passo e pude vê-la ao momento em que, nervosa, abria a porta da pobre mansarda. Uma vez no interior, porta e janela fecharam-se completamente.
Cresceu-me, doentiamente, a curiosidade. Aproximei-me da casa e, logo, uma melodia suavíssima, como vinda de celeste instrumento, chegou-me aos ouvidos.
Era uma música estranha, estorcendo-se em estrangulamentos de ais, exprimindo toda a angústia humana, num ritmo bárbaro, nos estos desesperados de uma dor suprema!
E remoía alucinadamente, e enchia a sala, como um gemido, agora; violenta, arrebatada, depois...
Disseram-me, na vizinhança, que era todas as noites aquilo, que Helena, com dezoito anos e com a tuberculose, vivia ali com o seu violino, e que enlouquecera de harmonia...