POR MARCOS FERNANDO KIRST
Trinta anos e trinta dias se acumulam sobre a data de 23 de agosto de 1990, quando, pela primeira vez, um jovem jornalista barbudo recebia prêmios em um concurso literário. O concurso era o hoje já consagrado Felippe D´Oliveira, da cidade de Santa Maria, então em sua 14ª edição. O dito laureado era eu mesmo, então com 24 anos, hoje ainda jornalista, com mais experiência e com menos barba, porém, imbuído do mesmo entusiasmo movido a sonhos, sempre renovados após a coleção de conquistas e de decepções, que reorientam a sintonia fina da trajetória de vida.
Com três textos, amealhei primeiro e segundo lugares no gênero crônica e segundo lugar em conto. Promovido pela prefeitura de Santa Maria, o concurso, na época, pagava prêmios em dinheiro para os três primeiros colocados nas três categorias: conto, crônica e poesia. Assim, enchi os bolsos com meu trio de conquistas, grana que se transformou na aquisição de uma máquina de lavar roupas, em um aparelho de videocassete e em uma garrafa importada do licor Frangélico, que eu julgava muito chique (e caro).
Mais importante do que as conquistas materiais, que já se foram (o licor, consumi em alguns meses; o videocassete caiu em desuso em apenas uma década e a máquina de lavar foi substituída por uma Enxuta ao migrar para Caxias do Sul, em 1992) foi a consolidação da segurança para apresentar meus textos a um amplo público anônimo, prática que passei a exercitar desde então e que hoje me garante o sustento.
Os textos? Seguem reproduzidos na íntegra abaixo, para satisfazer a curiosidade de algum eventual leitor generoso.
A MAÇÃ ERA A LEI
(Primeiro lugar em Crônicas no 14º Concurso Literário Felippe D´Oliveira, de Santa Maria, 1990)
Quando certo dia Guilherme Tell descansava sob a sombra de uma macieira, quis o destino que uma maçã lhe caísse na cabeça. Apesar de aparentemente insignificante, o acontecimento deixou Guilherme bastante intrigado. Segurou o fruto com a mão e pôs-se a pensar. Após alguns momentos de profunda reflexão, chegou à conclusão de que aquela maçã lhe caíra na cabeça porque já estava devidamente madura e julgou ser aquilo um sinal para que recomeçasse os seus treinos de pontaria.
Guardou a maçã, correu para casa, pegou o arco e as flechas e chamou o seu filho (que no momento se distraía lendo um livro de Física) para que o ajudasse. O resto da história todos lembram e muitos se perguntam até hoje de onde teria surgido aquela estranha obsessão do arqueiro por inutilizar toneladas de maçãs flechando-as por sobre a cabeça de seu próprio filho.
Apesar de frustrada pela incompreensão, a macieira não desistiu. Afinal, não era a primeira vez que a sua tentativa de revelar ao Homem um segredo científico da maior importância era mal interpretada. Na verdade, ela já tentara fazê-lo desde o seu primeiro contato com a espécie humana, há muito, muito tempo. Mas infelizmente apareceu uma maldita serpente para estragar tudo. De qualquer forma, não teria dado certo mesmo, pois Adão, na época, parecia andar mais preocupado com outros assuntos. Físicos também, mas de outra ordem...
Uma nova oportunidade surgiu quando, séculos mais tarde, uma senhora, trabalhando em um sítio, resolveu fazer uma pausa perto da macieira. Sem perder tempo, a histórica árvore pôs-se em ação. Largou o fruto e ele, como era de se esperar, lançou-se para baixo, acertando em cheio a mulher, uma quituteira famosa que, imediatamente, inventou a torta de maçã. Em outra ocasião, lançou o fruto sobre um fabulista famoso que buscava inspiração dormindo sob sua sombra e este, de imediato, acordou e criou uma história envolvendo uma bruxa má, anões, espelhos e maçãs envenenadas.
Indignada, cansada de tanta incompreensão, a macieira finalmente desistiu de tentar revelar ao homem o seu segredo, pelo qual fora justamente batizada, no Jardim do Éden, de “Árvore da Sabedoria”. Tomada a decisão, a macieira, resignada, nunca mais bombardeou com seus frutos as cabeças daqueles que vinham ao seu encontro.
Foi assim durante muitos anos até o dia em que nasceu um garoto chamado Newton. Cresceu e tornou-se um jovem problemático, cheio de dúvidas em relação a si próprio e à sua verdadeira vocação. Ele queria porque queria ser arqueiro, de tanto que gostava de atirar com arco e flecha. Seu maior ídolo era Guilherme Tell, que nos livros flechara uma maçã na cabeça de seu filho. Mas o pai de Newton o contrariava, dizendo-lhe que deveria ir para a Universidade, estudar e ficar rico e famoso, que arco e flecha não dava dinheiro para ninguém e que, afinal de contas, ele atirava muito mal.
Tentando provar o contrário, Newton inscreveu-se num concurso de tiro ao alvo. Treinou bastante, colhendo algumas maçãs e colocando-as na cabeça de seus amiguinhos, para flechá-las. Teve de cessar os treinos quando perdeu todos os seus amiguinhos, mas não desistiu de participar. Classificado em antepenúltimo lugar, Newton quebrou seu arco e foi curtir a fossa sob a sombra da famosa árvore. Ficou lá sentado durante horas e horas e a macieira nada. Ela estava mesmo resoluta em não voltar atrás em sua atitude de nunca mais se meter nos rumos da humanidade.
E estaríamos até hoje nos perguntando por que a droga da caneta cai no chão quando escorrega de nossos dedos suados, obrigando-nos a fazer as mais mirabolantes contorções na tentativa de catá-la, arranjando, assim, lamentáveis dores nas costas e na cabeça que bate na mesa quando já estamos voltando, se não fosse aquele ventinho providencial que soprou naquele momento e derrubou a maçã na cabeça de Newton, tornando-o famoso como o seu pai queria.
Pena que a História e as lendas costumem omitir tais detalhes...
DECIFRA-ME OU TE DEVORO
(Segundo lugar em Crônicas no 14º Concurso Literário Felippe D´Oliveira, de Santa Maria, 1990)
O aparecimento daqueles pontos de interrogação por todos os cantos do prédio onde funcionava o curso de Comunicação Social causou bastante espanto. Nos corredores, nos murais, em cada sala de aula e até mesmo nos banheiros podia-se encontrar uma folha de papel de jornal com um ponto de interrogação vermelho pintado.
Durante os primeiros dias em que o curso conviveu com aquilo, ninguém levou o fato muito a sério pois, afinal, como se sabe, o pessoal da Comunicação é mesmo muito criativo. Tudo não devia passar de uma nova produção da turma dos formandos em Publicidade, ou do anúncio de um novo jornal-laboratório criado pelo pessoal do sexto semestre de Jornalismo. Mas o tempo foi passando e o mistério não se esclarecia. Os pontos de interrogação continuavam lá e começavam a se expandir para os prédios vizinhos, sem que ninguém conseguisse imaginar quem seria o autor da brincadeira e o que pretendia com ela. Na realidade o pessoal do Jornalismo nada tinha a ver com o assunto, tampouco as turmas da Publicidade, e descobriu-se que até mesmo as pessoas mais suspeitas do curso estavam ansiosas por saber de que se tratava aquilo. Seria uma forma de protesto? De quem? Contra o quê? Anarquistas? Algum engraçadinho inconseqüente? Dúvidas, muitas dúvidas para nenhuma sombra de resposta...
O fato é que chegou um momento em que a presença daqueles sinais começou a inquietar a todos. Ninguém mais se sentia à vontade em lugar algum do curso, pois, para onde quer que se olhasse, lá estava aquele constrangedor ponto de interrogação, agredindo a todos com sua simbologia de incerteza, insegurança, de questionamentos sem respostas, trazendo à lembrança de cada um os seus mais íntimos e abafados temores. A decisão foi consensual: passaram a arrancar todas as folhas de jornal com os pontos de interrogação pintados. A brincadeira tinha perdido a graça! Professores e estudantes tiraram o dia para livrar o prédio da Comunicação daquela presença incômoda. Feito isso, foram aos prédios vizinhos, para onde os pontos de interrogação já começavam a se alastrar, e também os arrancaram todos. Houve um suspiro geral quando, à tardinha, constataram que tinham realmente se livrado daquela praga.
Mas a alegria durou pouco. Já no dia seguinte, as primeiras pessoas que chegaram ao campus horrorizaram-se com o que viram logo na entrada: um imenso ponto de interrogação vermelho pintado de alto a baixo no prédio da Reitoria. Além disto, agora não havia um lugar sequer no campus onde não estivesse colado um daqueles famigerados pontos de interrogação. Eles estavam em todos os cantos, em todos os prédios, em todas as salas e portas, na biblioteca, no gabinete do Reitor, no refeitório, em tudo. O caso não tardou a chegar à imprensa. Todos os jornais do país noticiavam o estranho fato que vinha ocorrendo naquela universidade e que estava alterando a rotina da comunidade universitária.
Era preciso tomar uma providência e o Reitor chamou a Polícia Federal para que solucionasse o caso. Enquanto as investigações prosseguiam, a Universidade foi fechada, mesmo porque professores e alunos se recusavam a voltar às aulas enquanto os sinais continuassem lá. Quando apareceu um ponto de interrogação pintado na estrada que ligava o campus universitário à cidade, intensificaram-se as investigações, pois era preciso evitar que a praga atingisse o perímetro urbano. A população, amedrontada, começou a abandonar a cidade rapidamente. Na mesma proporção em que o município ia ficando deserto, os pontos de interrogação invadiam as ruas, os muros, as casas, sem que nada os detivesse.
Finalmente, um certo dia, a polícia agarrou quase que por acaso o autor daquela verdadeira atrocidade. Ele fora pego no meio da noite enquanto pendurava uma de suas faixas num semáforo. As provas eram evidentes, pois carregava consigo mais de duzentas folhas de jornal com o maldito símbolo pintado. Foi imediatamente preso e levado para a sala de interrogatório com a finalidade de se colocar um ponto final naquela história. Era um velhote de oitenta e poucos anos e, naquele momento, longe de seus pontos de interrogação, parecia que suas forças se esvaíam e que estava à beira da morte. O delegado só conseguiu fazer-lhe uma pergunta, antes que ele fechasse os olhos e morresse:
- O que significam, afinal de contas, todos esses pontos de interrogação?
- Ora, meu filho, são incógnitas...
XEQUE-MATE
(Segundo lugar em Contos no 14º Concurso Literário Felippe D´Oliveira, de Santa Maria, 1990)
Acomodou o papel dobrado dentro da xícara vazia de café, bem à vista do carcereiro que recolhia a bandeja do almoço. Na hora da janta receberia a resposta, como de costume, entre os talheres de plástico ou embaixo do prato de sopa. Antes de anotar o lance, fizera resoluto o movimento com o cavalo para o centro do tabuleiro desenhado, escondido, no canto escuro da cela. Não restavam dúvidas, a torre de Petrus estava irremediavelmente perdida. Seguindo nesse ritmo e fazendo proveito dos descuidos constantes do oponente, ganharia em breve a partida. Mais oito ou dez lances apenas, transportados pelos passos do carcereiro – antigo cúmplice do secreto passatempo dos dois prisioneiros – e estaria dado o xeque-mate.
Naquela noite, no entanto, o bilhete de Petrus não veio. Blanco estranhou demais o fato, pois era a primeira vez que o ritmo se quebrava, em tantos anos de jogo, por centenas de partidas e sabe-se lá quantos lances. Teria o carcereiro descuidado desta vez do precioso bilhete que trazia a reação à tão bem estudada jogada de Blanco? Petrus nunca levara mais do que o espaço de tempo que separava uma refeição da outra para fazer o seu lance. Além disso, a jogada, afinal, não era de tão difícil solução. A torre estava de fato perdida, e o importante era armar um contra-ataque eficiente que evitasse maiores perdas futuras, atitude em que Petrus não costumava encontrar grandes dificuldades.
Não conseguiu adormecer naquela noite, angustiado com a visão do tabuleiro emperrado em seu ultimo lance. Na manhã seguinte, porém, a surpresa veio escondida no meio do pão do desjejum. Lá estava o bilhete de Petrus, com o lance do dia, retomando a partida. Ignorou o café, os biscoitos e o pão e correu até o tabuleiro, onde efetuou o movimento do oponente, sendo apanhado por nova surpresa: Petrus não só salvava a torre ameaçada como, com a mesma jogada, investia contra o seu próprio rei. Como é que não conseguira prever essa situação antes? Refez as jogadas anteriores, ponderou o problemas várias vezes e nada mais pode fazer a não ser convencer-se de que, havia subestimado o antigo oponente, de quem supunha já conhecer todos os truques.
O lance estava correto e era decisivo para inverter completamente os rumos da partida. Talvez residisse aí a explicação para a inusitada demora de Petrus para enviar a tão estudada jogada no dia anterior. Decerto achara justo requisitar mais tempo para certificar-se do movimento.
A partida transcorreu sem novas interrupções até o final, que desta vez registrou a vitória de Petrus, após um longo período de consecutivas derrotas. Seguiram-se novas rodadas, nas quais Blanco percebeu uma profunda mudança no comportamento das peças de Petrus. Ele avançava com maior perigo, conquistando melhor os espaços e vencendo com mais frequência, quebrando a antiga hegemonia habitual de Blanco.
Apesar da mudança de estilo imposta na ação das peças de Petrus desde aquele dia, Blanco jamais imaginaria o que havia ocorrido. Todas as vezes, porém, em que depositava o lance na bandeja que logo seria recolhida, despertava compaixão no complacente carcereiro. “Que vai ser deste velho apenado no dia em que eu também morrer e não houver mais ninguém para lhe substituir o antigo parceiro?” – pensava ele, conduzindo a bandeja com o lance até seu próprio tabuleiro, armado escondido na cozinha da prisão.