DIÁRIO DO ISOLAMENTO
POR T.S. Marcon
SÁBADO, QUARTO DIA
Todas as manhãs que contêm sexo são líquidas.
E pungentes. Mas sempre boas pra nós, homens, seres que gostam de cultivar maniqueísmos e de simplificar a existência, mesmo com o risco de um estreitamento do ato de viver. Somos previsíveis: nunca temos orgasmos ruins.
De forma que o dia começava promissor, as pequenas pontas de angústia da sexta haviam se dissipado e, dominando o céu, flutuava o sol – uma nuvem no estilo besouro queria invadir sua frente –, mas, na real, isso já começava a me preocupar.
Há uns 20 dias não chove, pensei no banho. Desliguei o chuveiro. Como está o nível das represas? Com a umidade do ar baixa, prolifera o pó e também a garganta começa a arranhar, como naquela antiga propaganda das pastilhas Vick: o bichinho do ranran pegou você? Nas animações meio toscas da época, ele era uma esfera verde cheia de pontinhas, bastante similar ao nosso novo inimigo.
Decidi que não vou chamar o vírus pelo nome. A web, a TV, o rádio, os jornais, os grupos de whats, os cartazes no elevador, todos já o nomeiam exaustivamente. Aqui, neste diário, ele será apenas o vírus, uma definição genérica. Não quero dar a esse pedaço de RNA envolvido por uma camada de proteína o privilégio de qualquer distinção no campo da linguagem.
Somos humanos, demos duro pra chegar até aqui, depredamos e matamos muito até criar todo um universo alegórico que nos permitiu, entre outros feitos, pintar o teto da Capela Sistina e pousar na Lua. É verdade que também elegemos imbecis, mas a linguagem simbólica é só nossa e ninguém tasca, ó vírus mendigo, quadrilheiro da infecção, desprezível herói da indecência.
Quando chegou a noite, abraçados sobre o sofá onde o Zizek gosta de se meter pra destruir as espumas por dentro, eu e a Juliana continuamos na pilha do cinema dinamarquês e assistimos “A Culpa”, um filme que, só descobrimos ao ver, se passa todo em dois ou três ambientes internos.
Que terrível e artística conexão de inconscientes nos levou até essa escolha! Mas outro dia falarei a respeito, pra não torrar tua paciência, ó leitor amigo, companheiro da solidão, admirável herói da resistência.
DOMINGO, QUINTO DIA
Terrível dia.
Levantei com uma saudade angustiante da Brenda. Antes da pandemia, sempre nos víamos aos domingos, além das quartas.
Decidi ir caminhando até a casa dela, que fica a 800 metros daqui. Tecnicamente, seria como uma ida o mercado, menos arriscada em termos epidemiológicos, pensei: nos falaríamos a um metro de distância, teríamos álcool gel à disposição ao levar o Fredd, nosso Yorkshire, passear um pouco.
Mas fui contrariado com veemência pela Juliana – e por minha irmã, no whats –, com razão. O que fiz? Me emburrei infantilmente até passar a dor, mas logo a Juliana pediu minha ajuda pra tirar o Zizek de cima da pia, ela estava ocupada fazendo um bolo e eu no sofá, então simplesmente fui até a cozinha e explodi, espantando o Zizek com um gesto enérgico e gritando “Tu não consegue nem lidar com um gato, guria?”.
O resultado foi um distanciamento seco e silencioso entre nós. Nada mais dissemos um ao outro por horas. Não houve almoço. A saudade e o arrependimento se misturavam como num liquidificador dentro do peito. À noitinha, propus um churrasco, já que a carne descongelada estava próxima de perder a validade, mas a Juliana disse que não estava a fim e foi pro quarto.
Me servi de uma dose de uísque, um que ganhei do Erni. Depois de uma taça de vinho Sozo. Abri a tampa da churrasqueira e coloquei o carvão. Sobre a pia, com a paciência dos velhos assadores, cortei os nacos de carne em tamanhos adequados à grelha, temperei a abobrinha e os tomates.
À medida que cada pedaço ia ficando pronto, eu comia. Foi o churrasco mais triste e solitário que já assei na vida. Mesmo assim, foi bom. Nós, homens, gostamos de simplificar a existência.
SEGUNDA-FEIRA, SEXTO DIA
Tapioca de carne de churrasco e ervilha, no café da manhã. Reconciliação.
E saudade dos fatos puros. Das coisas que fizemos ou experimentamos sem a necessidade do pensamento reflexivo.
Beber uma cerveja gelada na mesa externa de um bar. Fazer musculação. Correr na esteira da academia. Pedalar à beira da exaustão subindo o morro que desemboca nos lanches da Gringa, ao lado da borracharia, e, quando atingir aquela pequena acrópole urbana, sentir o vento no rosto, o coração desacelerando de volta ao ritmo normal, a glória desprovida de vaidade, isenta de qualquer símbolo. Se bem que a ingestão de cerveja induz à filosofia, eu sei.
Acendi o cachimbo, comecei a ler “Marrom e Amarelo”, romance do Paulo Scott, escrevi um pouco. Mas a urgência do Real logo voltou com força. Nos jornais e nas redes, crescia a insatisfação de muitos contra as medidas de confinamento. Falavam em salvar a economia.
Aos leões os velhos, os doentes crônicos. O grande deus Mercado estaria insatisfeito. Uma dessas pessoas que não podemos chamar de amigo, mas que está em nosso rol do facebook, postou que a anomalia é só uma gripezinha com grife.
Pensei na Itália, no Irã, na Espanha. Pelo whats, teses bem articuladas sobre o chamado lockdown vertical. O que fizemos até agora é o horizontal, que consiste em trancar toda a população em casa.
Segundo esses próceres, o sensato a fazer é amenizar o confinamento: ir liberando os jovens e os que não são dos grupos de risco para o trabalho e para a vida social, além de reabrir as escolas.
Tem tudo pra dar certo. Só precisamos combinar com o vírus antes.
Tiago Sozo Marcon é escritor, arquiteto e funcionário público municipal
E-mail: tsozomarcon@gmail.com