Caxias do Sul 24/11/2024

Saudades de um serrano reinventor das palavras

Junho marcou os cinco anos de morte do escritor florense Flávio Luis Ferrarini, que segue vivo e inspirador nas talentosas páginas das obras que legou
Produzido por Marcos Fernando Kirst, 01/07/2020 às 16:54:23
Saudades de um serrano reinventor das palavras
Flávio Luis Ferrarini retratado pelos pincéis do artista plástico caxiense Antonio Giacomin, seu amigo
Foto: REPRODUÇÃO

POR MARCOS FERNANDO KIRST

Neste recém cumprido mês de junho de 2020, cristalizaram-se na História os primeiros cinco anos sem a presença do escritor Flávio Luis Ferrarini pelos cenários da cultura e das letras serranas. Uma ausência que pesa pela falta do contato, mas que ganha consolo na leveza da extensa obra literária que ele deixou, e que pode e deve ser revisitada sempre que bate aquela nostalgia dele e da vontade de ler coisa boa, advinda da pena de escritor de verdade.

Ferrarini nasceu em Flores da Cunha em 5 de agosto de 1961, formou-se em publicidade e floriu a vida, sua e de seus leitores, com a produção de literatura para gente grande e gente pequena. Morreu cedo, aos 53 anos, no dia 16 de junho de 2015, em um acidente de trânsito na estrada que liga as duas principais cidades que faziam os cenários de sua vida: Caxias do Sul (onde trabalhava) e Flores da Cunha (onde morava).

Legou mais de 20 livros, em poesia, prosopoemas, crônicas, novelas e literatura infanto-juvenil. Caracterizava-se por ser um artesão de novas metáforas, cujas pérolas literárias vinham enconchadas em meia dúzia de sentenças. Ensinava, com seu estilo discreto (de ser e de escrever), que não é preciso escrever MUITO para escrever MUITO BEM. Para amenizar a nostalgia, elencamos alguns excertos:

VÍCIO DO OFÍCIO

Espreguiçar as palavras

Como um lagarto

Equilibrar as palavras

Como uma parede

Acender as palavras

Como um vaga-lume

Enlouquecer as palavras

Como uma mosca cega

Reinventar as palavras

Como um brinquedo

Fazer tinir as palavras

Como as campainhas

nas mulas.

(Poema musicado e arranjado pela banda caxiense “Rota Lunar”. Sente o som AQUI)

ILDO STANGHE

(Do livro “Vidas Minúsculas de Vila Faconda”)

crianças correm pelas veias da casa jorrando passarinhos pela boca. ao lado do fogão à lenha, o gato recebe a primeira e única refeição do dia: dois dedos de leite magro na caneca de alumínio. dona esmerilda retorna do telheiro da lenha encurtada por contrações. a parteira açunta é chamada às pressas. no dia de nossa senhora desatadora dos nós de 1908, nasce ildo stanghe. ainda em criança, ildo insere-se no quadro das figuras folclóricas de vila faconda. de início os facondenses se desfolham de tanto rir. no andar do relógio, ildo das plantas, como passa a ser conhecido, quase não desata mais risadarias. mas há exceções. com os braços levantados, como um ganso, diante do pinheiro centenário da praça, discursa: “não se preocupe que na próxima eleição o elegeremos prefeito, senhor pinheiro”. abraçado a um ipê florido, ildo das plantas faz poses e caretas como se fosse bater retrato. ajoelhado ao pé de um velho cinamomo, desfolhado e com os galhos todos retorcidos, ildo implora, aos prantos: “nono, tome remédio para reumatismo”. em dezembro de 1968, para uma árvore de natal, ildo pergunta: “boa noite, tia, posso pegar umas pitangas?”, e enfia logo um punhado de luzinhas coloridas na boca. desce pelo meio do corredor central de vila faconda piscando feito um vagalume. ildo morre aos 72 anos, como queria: de pé, igual às árvores nas quais enraizou-se até a raiz dos cabelos.

Vidas Minúsculas de Vila Faconda (2007)

O MENINO E O CHINELO

(Do livro “O menino da Terra do Sol”)

O menino é consequência do chinelo que escorregou no meio de uma noite espremida de estrelas, perto do Natal, e não fruto de um plano real dos pais, Dosolina (mais conhecida como Lina) e Antônio. O menino cresce como crescem os rabanetes, os brotos de feijão e os filhotes dos bem-te-vis. Cresce cercado, não por montanhas de livros, mas por montanhas de ignorância. Cresce sem juntar ideia de que o pato gracita, o cisne arensa, o camelo blatera e a raposa regouga. O menino cresce desobediente como um cavalo de cabo de vassoura.

Os sonhos do menino crescem para baixo como rabo de cavalo.

O Menino da Terra do Sol (2014)

(Poema sem título extraído da obra póstuma “Tira-gosto”)

Quando perdi meu primeiro dente de leite

Perdi a coragem que eu tinha de sorrir

Quando perdi meu primeiro grande amor

Perdi a coragem que eu tinha de amar

Quando num dia qualquer me perdi de mim

Perdi a coragem que eu tinha de voltar

Tira-Gosto (2016)