DIÁRIO DO ISOLAMENTO
Por T. S. Marcon
QUINTA-FEIRA, 2 DE ABRIL,
DÉCIMO-SEXTO DIA
“Aja como se você estivesse infectado. Use luvas e máscara. Só assim poderemos lutar contra a velocidade da contaminação”, publica um amigo arquiteto, no facebook.
Precisamos de material de limpeza: álcool, desinfetante e água sanitária, informa a Juliana. Pra variar, esqueci de comprar ontem. Vou caminhando até o super do bairro. A fila me faz decidir ir até a farmácia primeiro, a meia quadra dali.
Obviamente, não há mais máscaras à venda. A atendente, uma jovem de uns 20 anos, explica que a farmácia se recusou a comprar um novo lote do único fornecedor que dispunha do produto. “Ele queria nos vender a 4 reais cada uma. Normalmente, pagamos 50 centavos a unidade.” Estamos falando de máscaras descartáveis, aquelas cirúrgicas. Nosso país tem um senso precário de coletividade. A lógica individualista impera entre nós.
Nos primeiros dias de quarentena, assistimos (e presenciamos) uma corrida trágico-hilária aos supermercados, sobretudo os preferidos pela classe média alta, com filas enormes e carrinhos abarrotados de papel higiênico. Freud foi o primeiro a assinalar a ligação simbólica entre os complexos de apego ao dinheiro e da defecação.
Quando recebi, num grupo de whats, o vídeo de um velho barrigudo, branco e bem vestido, ao lado de sua mulher no interior de um desses supermercados, os dois a empurrar seis ou sete carrinhos transbordantes de mantimentos, tive ganas de revolta. Detalhe: dois carrinhos eram só de papel higiênico.
Preciso confessar, cúmplice leitor, que minha vontade foi de estar ali (espero que o leitor não seja o referido velho ou sua esposa), me aproximar do casal apegado ao acúmulo e, como um Robin Hood contemporâneo, um justiceiro do papel higiênico, começar a rasgar os fardos e a distribuir as unidades desse item (que já se mostrava escasso) aos clientes menos abastados.
Sou um privilegiado, penso, se durante uma pandemia o nível dos meus problemas é algo dessa ordem. De qualquer forma, foi um impulso que logo passou, depois que eu saí do aplicativo e me distraí um pouco.
SEXTA-FEIRA, 3 DE ABRIL,
DÉCIMO-SÉTIMO DIA
Segunda-feira entra em vigor novo decreto do prefeito, publicado ontem: 25% dos trabalhadores das indústrias e da construção civil podem retornar ao trabalho. O clima já era perceptível quarta-feira, na prefeitura, nas conversas de bastidores, na movimentação que nosso diretor-geral tinha de cumprir, descendo ao gabinete do prefeito para várias reuniões ao longo do dia. Nenhuma surpresa. A pressão de algumas entidades, aliada ao baixo número de contaminados (17), produziu o seu efeito. A engrenagem não pode enferrujar.
Não arrefecemos os cuidados, é claro. Eu já havia visto no Youtube uns três vídeos de como fazer máscaras com filtro de café e borrachinhas de dinheiro, tendo até feito dois protótipos bastante promissores, quando uma das amigas da Juliana, também chamada Juliana, conta que está produzindo máscaras. E manda fotos.
Finalmente, uma boa mensagem. As duas foram colegas em várias oficinas de artesanato em tecido. Os padrões são atraentes, e o tamanho das peças parece bom. Cobre parte do rosto da Juli, que se usou de modelo ao enviar as fotos. Capacetes, bonés e chapéus quase sempre são um problema pra mim, que tenho a cabeça grande, como a do meu avô.
Encomendamos 6 peças. E o melhor: ela entrega em casa.
É engraçado pensar que em 1918 os jornais davam recomendações parecidas com as de hoje. Evitar aglomerações, não fazer visitas, lavar as mãos com frequência. Um século de distância nos separa daqueles homens bigodudos, daquelas mulheres de vestidos longos e grandes chapéus, a falar e escrever uma língua portuguesa empolada, cheia de influências estrangeiras.
Línguas cheias de Influenza, o nome daquele vírus. Cadê a evolução? Essa ideia positivista de progresso linear, ascendente e material, essa que nos foi ensinada na escola e escrita na bandeira do país, é uma fraude.
O interfone toca. Desde que o colocamos em outro ponto de outra parede, há mais de um ano, perdeu a eficiência. Quem atende aqui em cima só ouve um chiado, um ruído de fundo (talvez a radiação do Big-Bang) e tem de intuir que foi um ser humano quem apertou o botão.
Quem aperta o botão lá embaixo só ouve um estalido seco, e depois, silêncio. Precisamos descer pra descobrir quem é. Um segundo antes disso, a Juli manda uma mensagem no whats: estou aqui embaixo.
SÁBADO, 4 DE ABRIL,
DÉCIMO-OITAVO DIA
Saudade dos velhos.
Saudade da Brenda. Do Fredd.
Dou a ideia: vamos caminhando até a casa da Brenda, depois até a dos meus pais? Juliana topa. Colocamos nossas novíssimas máscaras artesanais de tecido; a minha camuflada em tons de verde e marrom, um clássico; a dela branca com borboletinhas negras a flanar pelo rosto, quem sabe mensageiras silenciosas de um futuro melhor...
A cidade, ao menos esse trajeto entre o bairro Santa Catarina e o Pio X, parece ter recuperado uma vibração mais humana. Sobre as máscaras, os olhos de quem se cruza pela rua se encontram. O tráfego de veículos tem longos intervalos de silêncio e ausência, como no tempo em que jogávamos futebol na rua.
Lembrei de duas notícias lidas ontem na web: os peixes voltaram a Veneza. A camada de ozônio que protege o planeta se recuperou, feito um machucado que cicatriza.
Meus pais estão bem. Agora riem da situação do confinamento. Eu havia me preocupado um pouco com minha mãe no começo da pandemia, quando, numa tarde de quarta, ao telefone, ela chorou diante da impossibilidade de conferir in loco as ofertas de verduras. Mas a impossibilidade que me assusta ainda é a dos abraços, a dos beijos. Ah, isso sim é o estranhamento em seu grau máximo de contundência.
Voltamos pelo mesmo trajeto. São evidentes algumas semelhanças entre pedaços da paisagem dos dois bairros. Longos quarteirões com fachadas cegas ou muros altos, deselegantes, sem qualquer gentileza urbana. Velhos pavilhões abandonados, heranças de um passado fabril diferente, mais pesado e lento, cujas paredes servem hoje de mural para grafites e pichações coloridas. Há uma beleza melancólica nesses objetos esquecidos, elefantes de tijolos e telhas de aluzinc corroídas, à espera de uma completa reforma. Ou da demolição.
São como espelhos: testemunhas da nossa própria derrocada.
Tiago Sozo Marcon é escritor, arquiteto e funcionário público municipal
E-mail: tsozomarcon@gmail.com
Confira a evolução do "Diário do Isolamento" nas edições anteriores, nos links:
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