Quem são nossos líderes? Quais atributos elegemos como primordiais no perfil humano daqueles em quem julgamos encontrar capacidade para nos representar frente ao poder? E quais as responsabilidades que o manuseio do poder exige?
Por incrível que pareça, muitas vezes algumas pistas sobre essa intrincada questão, que afeta a vida de cada cidadão, pode ser vislumbrada nas páginas da literatura ficcional. Confira a abordagem que fiz sobre o tema na crônica reproduzida a seguir.
QUEM MERECE SER PICADO?
Por Marcos Fernando Kirst
“Com um grande poder, vem uma grande responsabilidade”. A frase, carregada de verdade e de sabedoria, ficou famosa e ganhou o mundo a partir da década de 1960 do século passado, ao ser proferida por Tio Ben ao seu sobrinho, o adolescente Peter Parker, já na revista de estreia do Homem-Aranha (uma história em quadrinhos), nos Estados Unidos. Tio Ben estava prestes a morrer pela ação de um bandido tresloucado que minutos antes o recém superpoderoso aracnídeo, alter-ego de Peter, deixara fugir ao vê-lo cometer um roubo à mão armada, “por não ter nada a ver com aquilo”.
O bandido escapa e acaba assassinando o tio do Homem-Aranha, que até então só estava usando seus novos poderes para proveito próprio. Depois da tragédia, Parker passa a vestir o manto de “herói” assim que decide usar com grande responsabilidade o grande poder que recebera por acaso, ao ser picado por uma aranha radioativa em uma aula de química, no Ensino Médio.
Mas aí vem a questão (pois são necessárias questões para embalar em responsabilidade estas crônicas de segunda). E se o Destino, esse semeador de incongruências, tivesse direcionado a picada da aranha radioativa a um destinatário desprovido do alcance da sabedoria de um Tio Ben e destituído de força de vontade, haveria super-herói salvando o mundo das ações do mal? Ora, no universo dos quadrinhos, quando um superpoder é conferido a uma pessoa sem caráter, ela logo se transforma em supervilão, a ser combatido pelos super-heróis, imbuídos de ética e senso de justiça.
Mas o que aconteceria se esses grandes poderes fossem conferidos a um preguiçoso, a um niilista ególotra, sem a mínima vontade de vestir uma máscara e sair do sofá da sala a perseguir bandidos e distribuir sopapos?
"Bartleby", criado por Herman Melville
Felizmente, nenhuma aranha radioativa picou a mão de Bartleby, o escriturário insubordinado e ocioso criado pelo escritor norte-americano Herman Melville (1819 - 1891), que entrou para a história da literatura entoando o mantra “prefiro não fazer”. Ele concorreria em inatividade heroica com o niilista absurdamente estático Meursault, criado pelo escritor francês Albert Camus (1913 - 1960) em seu livro “O Estrangeiro”. Nenhum deles usaria o grande poder com grande responsabilidade, isso é certo.
"O Estrangeiro", de Albert Camus
No âmbito da vida real, que é o cenário em que a ficção pretende fazer incidir os reflexos daquilo que elucubra, é preciso ardentemente almejar que aqueles raros privilegiados dotados com o acesso aos grandes poderes saibam agir com grandes responsabilidades. Mas, pelo que se tem visto, esse tipo de coisa é mais presente na ficção.
(Crônica publicada originalmente no jornal "Pioneiro", de Caxias do Sul, em 7 de maio de 2018)