Caxias do Sul 21/11/2024

Pegadas na neve e trilhas na areia

Escritora Marilia Frosi Galvão traça um paralelo imaginário e literário entre a praia Paraíso e os Alpes da “Montanha Mágica” de Thomas Mann
Produzido por Marilia Frosi Galvão, 04/04/2020 às 15:23:35
Pegadas na neve e trilhas na areia
Foto: Reprodução/Divulgação

POR MARILIA FROSI GALVÃO

Olho para meus pés enquanto eles afundam na areia deixando pegadas. Suaves ondas do mar, como num passe de mágica, fazem-nas desaparecer de súbito, cobrindo-as com as espumas. Pernas salpicadas de areia. Essa caminhada à beira-mar me traz à lembrança outra caminhada, em que as pegadas na neve são recobertas pela nevasca. Pernas salpicadas de neve.

Confesso que vivi, nestes dias de férias de verão, antes da pandemia do coronavírus, uma experiência única. Ignorante ainda da realidade que, sorrateiramente se aproximava, jamais poderia imaginar que, em uma quarentena imposta por um vírus, escreveria esse texto, associando formas de isolamento como essenciais para a cura ou contágio de doenças, pois essa é uma história digna de ser narrada.

Alternei viagens de espírito entre o calor dos dias na praia Paraíso e o frio dos Alpes Suíços – entre mar e picos montanhosos – diferença de 1600 metros – ou 5 mil pés de altura, e tudo porque me apaixonei perdidamente por Hans Castorp. Ele pegou em minha mão e falou “vem”. Deixei-me levar, pois bate em meu peito um coração emocionável!

Trilhamos juntos um pedaço da vida na neve. Segundo o que ele me disse, achava a neve muito parecida com as praias do mar. Lembrou-me “da monotonia comum e falou no pó de neve, fofo, imaculado, o qual desempenhava o mesmo papel da areia de brancura amarelada”.

Ora, imagino que tanto minhas pegadas na areia quanto as de Hans na neve nos deram aquele prazer indizível que um passeio mágico nos proporciona. E, de quebra, ficamos bronzeados.

O sol que aquece as areias é o mesmo que reflete a luz da neve. Já não direi o mesmo da brisa marítima, o ar da praia preenche nossos pulmões, tem cheiros, enquanto Hans precisa do ar rarefeito, inconsistente, inodoro, lá de cima, para curar-se. Aprendi com ele a força da palavra aclimatar, precisamos aclimatarmo-nos para podermos exercer um julgamento estético a respeito do belo que se nos apresenta, em especial em relação à natureza.

Pois é, a natureza. Na montanha, os pinheiros, as estrelas azuis da genciana, aquilégias, campânulas, cravos silvestres, lírio verde, ranúnculos, soldanelas azuis, prímulas amarelas e vermelhas, lariços, amores-perfeitos bravos, bem-me-queres... na praia, as palmeiras, os coqueiros, a flor de Vênus, margaridas, gerânios, hortênsias, bromélias, buganvílias, onze-horas, hibiscos...

Assim como a natureza daqui difere da de lá, na flora e na fauna, diferem os pontos de vista das pessoas, “os da montanha e os da planície”. Interpreto que “aclimatar-se” não só representa uma escalada para a cura da doença física, mas inclui a escalada espiritual, com processos de questionamento, reflexões, sentimentos, paixões.

Sim, para quem se hospeda no Sanatório Berghof, para curar a Tuberculosis, nos Alpes Suíços, sob os cuidados do Dr. Behrens e Dr. Krokowski, como Hans Castorp, “enfermiço da vida” (assim o designou Settembrini, outro pensionista), é necessário aclimatar-se, ou seja, adquirir hábitos, principalmente, o da “aquisição do hábito de não se habituar”). Essa afirmação me abalou. Penso em “aclimatar-me” em certas situações de vida que não posso mudar!! Ou seria o contrário?

Outro ensinamento dado por Hans – meu adorável companheiro de trilhas nos bosques nevados: “melhor será que não se compute o tempo que decorrerá sobre a Terra lá em cima – três semanas são uma porção de tempo – e não três semanas como ideia dos de lá de baixo”.

Concepções não são imutáveis. Lá em cima, para os “hóspedes” reclusos no Sanatório a menor unidade de tempo é o mês. Com alguns fatos de nossas vidas não nos habituamos nunca - a passagem do tempo, nesse caso.

Ah, o tempo! Afinal, o que é o tempo? As ponderações a respeito do tempo, avaliadas e discutidas lá nos picos nevados são uma constante entre os pacientes. Hans me surpreendeu quando afirmou que podemos associar o tempo ao espaço. Coisa louca! Mas verdadeira. Deduzo, se eu for de avião a Paris, serão treze horas de voo. Se eu for de navio, quantos dias? E em pensamento? Já estou lá.

“Hospedada” no Sanatório Berghof, acompanhei o jovem herói Hans Castorp em sua jornada. Convivi com outros hóspedes, de muitas nacionalidades, e seus questionamentos sobre vida, morte, amor, tempo, confinamento, abandono, saudades. Hei de ler uma segunda vez esse romance que nos desafia e instiga ao aprofundamento e questionamentos. Afinal, quem somos e para onde queremos ir?

São 800 páginas. Pena que muitas vezes postergamos a leitura de um romance por ser extenso. Bem, agora temos tempo, neste confinamento obrigatório, nos primeiros meses de 2020, a fim de vencer esta guerra contra a pandemia, para fazer uma primeira ou segunda leitura.

Harold Bloom, historiador e crítico literário, em seu livro “Gênio – os 100 autores mais criativos da história da Literatura”, nos aconselha a retomar “A Montanha Mágica” nesses tempos turbulentos. A genialidade de Mann, o autor, é ensinar um “ouvir arguto”, sem o qual seremos mais facilmente seduzidos pela brutalidade.

Em cada página do livro “A Montanha Mágica” de Thomas Mann, prêmio Nobel de Literatura – 1929 – vivi, além do prazer da leitura, da reflexão e da surpresa, a do amor. Ah, o amor, por ser invisível, precisa mais do que as palavras “eu te amo” – precisa ser renovado, em ações concretas o tempo todo. Pontes podem ser reconstruídas entre as pessoas!

Pegadas na areia... pegadas na neve... pegadas na arte... nos livros... sempre!!!

Marilia Frosi Galvão é professora, escritora e cronista

e-mail: galvao.marilia@hotmail.com