Caxias do Sul 25/11/2024

Paulo engraxará até o fim

Na Praça da Alfândega, em Porto Alegre, engraxate de 77 anos persiste na profissão que em breve estará fadada a figurar apenas no cinema
Produzido por Marcos Mantovani, 19/07/2021 às 17:09:42
Paulo engraxará  até o fim
Foto: MARCOS MANTOVANI

POR MARCOS MANTOVANI

Durante os dez minutos de um engraxamento, os engraxates têm consciência de que o cliente está sentado num trono. Existe ali um reinado que não tem nada de simbólico. Rei e súdito sabem como devem olhar um para o outro e sabem que os pronomes de tratamento não são iguais para os dois. É a lógica da monarquia: quando um está tronando, o outro está a seus pés.

Pés alheios que possibilitam o salário de Paulo Lopes da Silva. São 77 anos e uma vontade de seguir engraxando que não acusa indícios de desistência. “Se Nosso Senhor quiser, vou engraxar sapato até o fim”, diz e dá dois tapinhas no peito, com cadência, talvez um gesto instintivo de autoconfirmação, o peito como minitambor que regula o timbre identitário.

A identidade de Paulo está lavrada na Praça da Alfândega, em Porto Alegre. Se nos anos 70 e 80 ele passava por ali só como pedestre, a partir da alvorada dos anos 90 ele começou a perpetuar na praça o seu lugar de fala. E de ação. Voz e mãos no forjamento da faceta profissional que mais combina com ele, chegando a dois picos de auge, quando os ex-governadores Alceu Collares e Olívio Dutra foram seus clientes. “Viu só?”

devaneio, caçulice, viuvezes

Paulo nasceu e gastou a infância na zona norte de Porto Alegre, onde hoje se estende o bairro Passo d’Areia. O maior devaneio da meninez dele gravitou em torno do futebol. Nos campinhos ásperos de piso marrom, sob um sol que jamais brilhou da mesma forma para todos, Paulo dominava a bola mas não a ansiedade — uma ânsia que, nas décadas de 40 e 50, queria porque queria fazer dele um jogador profissional do Inter.

Ficou sem o Inter, sem a profissionalização e, ao longo dos anos, sem as seis irmãs e os quatro irmãos: todos já faleceram. “Ainda sou o caçula”, diz e em seguida emudece, olhando para a direção da Praça da Alfândega onde fica a estátua equestre do general Osório, general que um dia foi ídolo de guerra e, hoje, atua como ancoradouro para olhos cansados.

Mas os olhos de Paulo retornam à entrevista. Os olhos e a voz. Com uma seriedade que retesa o seu pescoço, ele diz que, além de todos os irmãos e irmãs, já perdeu duas esposas, o que lhe deu a condição rara de ser um viúvo reincidente. A primeira que faleceu se chamava Zenóbia. Sobre a segunda, Paulo prefere não tocar no assunto. Ele finaliza essa parte explicando que foi casado três vezes — a primeiríssima é a única ainda viva, Ercília, de quem se separou há décadas.

fervedouro, remanso, evangelização

Numa de suas outras vidas, antes que o engraxe virasse sua profissão, Paulo cantou na noite porto-alegrense por um tempo e ganhou até dinheiro com isso. Samba e bolero. Uma cantoria que dividia espaço com as participações constantes dele na escola de samba Império da Zona Norte, primeiro como integrante da bateria, e depois na seleta ala da velha guarda. Foi a época do fervedouro.

Mas o tempo se desgastou e essa fase ruidosa da vida cedeu espaço ao remanso. “Eu bebia, fumava, não me cuidava, então decidi mudar tudo”, ele diz, atenuando o tom de voz, como se estivesse num círculo de reabilitação. Era o momento não só de cuidar da saúde como também de serenar o espírito, apaziguar as movimentações.

Esse apaziguamento aconteceu dentro da Igreja Universal. “Fui e gostei”, Paulo revela. Gostou a ponto de resolver frequentar a igreja com regularidade. E virou rápido alguém importante na articulação das atividades religiosas. Por exemplo, em certos sábados, Paulo faz parte de um “grupo de elite”, como ele diz, grupo que tem a função de evangelizar ex-presidiários, dando-lhes de mão beijada um norte confiável.

tombamento, esmero, Marlon

A casinha de engraxe tocada por Paulo fica na ponta oeste/sul da Praça da Alfândega, a uns quinze metros da Caixa Econômica Federal. Após 27 anos de prestação de serviço na praça, ele não titubeia na assertiva: “O meu lugar é tombado, ninguém me tira daqui”. A única casinha ao lado da sua pertence a uma engraxate chamada Vera, só que Vera não aparece há mais de um ano, fato que dá a Paulo a soberania do entorno.

O espaço de engraxe dele é arrumado. O trono onde fica o cliente é uma daquelas velhas cadeiras de estádio, nada de especial, mas por cima dela vai uma almofada lilás, macia e retrô, um capricho do qual Paulo não abre mão — o que ele não solta também é o tapete, que dá um luxo extra ao metro e meio frontal da casinha. Flanqueando tudo isso, existe a mesa de apoio, com alguns panos, escovas, graxas (escura, vermelha, marrom e havana). Um esmero.

Assim como era esmerada uma das personalidades que Paulo mais admira: Marlon Brando. “Na minha época, qualquer homem queria ter o charme dele”, diz, abaixa a máscara protetora e sorri, pronto para enfim ser fotografado. Foto que fica boa já na tentativa inicial, chamando a atenção para as duas palavras em inglês na jaqueta bordô de Paulo, “free style”, o estilo livre que lhe dá a liberdade de ser o que ele quiser: engraxate aos 77, evangelizador, Marlon Brando.