POR MARCOS MANTOVANI
Os pulsos de João se descobriram firmes aos 11 anos. João viu dois pedaços de bambu jogados num dos cantos do pátio e teve uma ideia involuntária que acabaria definindo seu futuro, seu foco e seu jeito de estar na vida.
Se existisse um vídeo caseiro desse momento, na CENA 1 veríamos o menino recolhendo do piso os dois pedaços de bambu que até aquele dia de 1990 eram apenas entulho.
Na CENA 2 do vídeo, algo acontece. João está concentrado. Ele ajeita os bambus entre os dedos, sente uma firmeza inédita nos pulsos de 11 anos e dá com os bambus algumas batidas ritmadas no chão, intuindo algo que ele ainda não consegue compreender, intuindo que o tempo dali em diante só fará sentido ao lado de atabaques, bumbos, pratos splash e djembês.
Mas é só na CENA 3 que começa a jornada do herói, do mini-herói. João percebe que não pode bater os bambus contra qualquer superfície, pois eles não são tão resistentes assim. Então João vai atrás de uma fita isolante e a usa inteira nas pontas dos bambus (artesanato musical), para em seguida sair testando as suas baquetas na mesa, nas cadeiras e nas grades de casa. Extraoficialmente, nasce ali o baterista.
matrícula, metiê, Neil
Leide, a mãe, deu João à luz no Distrito Federal, em Brasília, mas aos 5 anos dele a família já estava em Caxias do Sul. Dos 11 aos 13, João praticou sozinho as suas baquetas de bambu em todas as superfícies possíveis de casa. Daí alguém da família se rendeu e o matriculou numa escola de música que existia na esquina da Pinheiro com a Alfredo.
Segundo a linha do tempo que hoje João organiza para si, foi só aos 13 anos que nasceu oficialmente o baterista, quando o profe Mário Pastor ensinou a João o básico do metiê: técnica, equilíbrio, ritmo e pulsação. Os bambus cederam espaço a baquetas reais e a um conjunto intrincado de tambores que aos poucos ganharam nomes próprios: chimbal, surdo, caixa, bumbo, tons, pratos de condução e de ataque. João os atacava.
Quem também os atacava era Neil Peart, do Rush, baterista que, aos olhos do menino, era o mais milagroso dos santos. E assim João passou a observar todos os bateristas, o cara do fundão do palco, “o coração de uma banda”, ele diz. Àquela época, João não imaginava que, no futuro, ele seria os corações de pelo menos 30 bandas, entre as quais Fall Up e Naja. Também não imaginava que a bateria não seria tudo em sua vida.
decepção, maracatu, bugres
Aos 28 anos, João teve uma decepção com parte do meio musical, “com o íntimo da coisa, com certas pessoas”, diz. E conta que ficou um ano e meio longe do rock, seu quintal até então. Nesse intervalo, João foi convidado pelo pianista Léo Ferrarini para tocar temas de jazz e música brasileira. “Mas peraí, Léo, eu sou um batera que toca trash metal, não sei se consigo mudar.”
João mudou. E em determinado momento chegou ao maracatu, sua virada de chave rítmica. Quando ouviu pela primeira vez o CD da Nação Estrela Brilhante do Recife, João buscou seus próprios olhos no espelho e prometeu ao olhar refletido que um dia ele formaria um grupo de maracatu. Isso em 2007, período em que Caxias do Sul ainda não tinha essa manifestação cultural afro-brasileira.
Ela viria em 2009, com o grupo Zingado, no qual João tocaria por três anos. Só que João devia algo a si mesmo. Então ele pegou um avião e foi a Olinda para se embriagar na fonte, consumir tudo o que estivesse relacionado a maracatu. Essa experiência e os estudos culturais que fez sozinho permitiram que em 2015 João formasse em Caxias o Baque dos Bugres, grupo de Maracatu de Baque Virada que hoje também absorve o caboclinho e o côco de roda — evidências que provam que o baterista de trash se maracatuou.
umbanda, escuta xamânica, extensões
João é umbandista desde 2018. E já foi filho da Casa Branca de Ogum Beira Mar e Cabocla Estrela do Mar e ainda da Casa Céu de Pai Joaquim de Aruanda, casas onde tocava atabaque e ilu. Hoje, João pratica a umbanda em casa e “na vida”, como ele diz. Diz também que desde 2019 tem escutado bastante música xamânica — interesse que levou João inclusive a participar de rituais xamânicos, tocando djembê.
Uma existência de ritmos e espiritualidades.
Mas há nele espaço para outras larguras. João é terapeuta de Reiki. E é educador social na APAE, uma atividade que ultrapassa a musicalidade e que alivia as deficiências de quem está lá, João estimulando a pintura, o esporte, os passeios lúdicos e as brincadeiras de pátio, João às vezes tocando violão ou tamborilando para as crianças e adolescentes, os pulsos dele sempre firmes, os pulsos que aos 11 anos já haviam entendido a importância da firmeza. A importância do firmamento, da firmação.
Ritmos e espiritualidade conduzem a batida da vida de João Viegas (Foto: Marcos Mantovani)