Caxias do Sul 21/11/2024

Os dois mundos de Sofia

Artista caxiense encara o seu transtorno afetivo bipolar com lucidez, sutileza e imaginação
Produzido por Marcos Mantovani, 24/01/2023 às 10:05:28
Os dois mundos de Sofia
Sofia, artista plástica, criou a personagem "Eloá" para comunicar ao mundo o recado sobre a questão da neurodiversidade
Foto: Marcos Mantovani

Por MARCOS MANTOVANI

Aos 14 anos, numa tarde em que o destino quis mostrar um pouco de serviço, Sofia Rigotti descobriu que era neurodivergente. Ou neuroatípica. Quer dizer, o diagnóstico que ela recebeu indicava transtorno afetivo bipolar do tipo 2, que, grosso modo, faz com que a pessoa caminhe por dois mundos: um deles nuançado com estados de euforia, ao passo que no outro há episódios repetitivos de depressão.

Dito de outra forma, a química cerebral e as teias cognitivas de Sofia meio que não se encaixam nos padrões considerados regulares. Sim, historicamente já houve muito preconceito envolvido. E muita desinformação. Até que em 1998 uma socióloga australiana chamada Judy Singer inventou a palavra de ouro, a palavra que enfim acabou trazendo a justiça necessária: neurodiversidade.

Aliás, numa das pinturas (acrílica sobre tela) feitas por Sofia há uma frase direta e pressagiosa: “O futuro é neurodiverso”. Quem diz isso é a personagem que ela criou, Eloá, uma menina-mulher que, na pintura em questão, está ladeada por um girassol e pelo logo da neurodiversidade, feito com glitter holográfico. O recado ali é para você: respeite o fato de que somos todos neurodiversos.

a linha do tempo

Aos 8 anos, Sofia passou a sentir algo estranho, algo para o qual ela ainda não tinha vocabulário. “Crises depressivas”, disseram a ela, que continuou não captando o sentido. As únicas coisas que ela captava eram as sensações, os fenômenos sem rosto que subiam e desciam pelas paredes do seu sistema nervoso, pequenos monstros que, de molecagem, desregulavam as caixas do humor e do ânimo dela.

Aos 12, ainda sem o diagnóstico de transtorno bipolar, Sofia teve uma sequência de estados eufóricos, que se avolumaram devido ao excesso de antidepressivos e assemelhados, como por exemplo o Rivotril, com o qual ela manteve uma amizade íntima demais, dependente demais — aquele tipo de amigo que talvez não seja o ideal para termos tão por perto.

Aos 13, ela esbarrou num fato elucidativo que mudou tudo. Numa das sessões, a psiquiatra entregou à mãe dela um livro sobre bipolaridade, pois havia suspeitas de que o diagnóstico talvez fosse esse mesmo. Acontece que quem leu antes o livro foi Sofia. Leu-o e se identificou com o narrado. “Mãe, por que eu tô descrita aqui dentro?”, ela disse, e pela primeira vez inferiu com força que o nome do que existia nela poderia ser realmente transtorno bipolar.

psicofobia, fones abafadores, balé

Com o diagnóstico na mão, aos 14 anos Sofia finalmente entendeu por que sofria bullying na escola. Violações psicológicas agressivas, sem nenhuma complacência, bem do jeito que crianças e pré-adolescentes são versados em maquinar. Tanto que em algumas épocas um monitor precisou acompanhá-la em certas situações, como nos recreios.

Mas o que a importunava não era só o bullying. Outro perseguidor veio de carona, com a diferença de que desta vez era um perseguidor impessoal: o barulho que existia em volta. Sofia desenvolveu uma sensibilidade sensorial que fazia (ainda faz) com que às vezes os ruídos do entorno se tornassem intoleráveis. Então ela teve de adotar fones abafadores em determinadas ocasiões, para que a vida pudesse seguir adiante.

O que seguiu adiante por um tempo foi o balé, dos 6 aos 13 anos dela, no Ballet Margô. Sofia se aprimorou como bailarina e curtiu o processo enquanto pôde. “Foi um período tranquilo no início, mas depois virou algo que eu não conseguia mais fazer”, ela diz. A bulimia e as crises de ansiedade passaram a jogar contra, a minar o prazer da dança, até o dia em que Sofia decidiu cair fora dessa parte da biografia dela.

arte, Eloá, diálogo privado

A arte entrou cedo no cotidiano dela, primeiro como um artifício para o tratamento, e em seguida como vocação, como destino mesmo. Ela cria telas com tinta acrílica. E desenhos com nankin. Uma competência que Sofia não guarda só para si — uma vez por semana ela se propõe voluntariamente a praticar o que sabe com outras pessoas, na APAE.

Além do voluntariado, Sofia está no segundo semestre de Artes Visuais, na UCS. Pouco tempo de curso ainda, verdade, mas o fato é que ela já expôs duas obras numa mostra (uma dessas obras, aliás, recém foi adquirida pela voz que elaborou este texto). E foi dessa forma que nasceu Eloá, a personagem que, igual à sua criadora, usa fones abafadores, em tentativas de não dar ouvidos às coisas ruins do mundo, ao bafafá desnecessário.

A propósito, Eloá representa o próprio transtorno bipolar. Essa personagem é um repositório. Foi a maneira que Sofia encontrou para conversar com sua bipolaridade e, assim, propor tréguas temporárias. Aos 18 anos, ela vem propondo essas tréguas de um jeito bem particular, com muita imaginação, com muitos temas neurodivergentes, com muito nankin e giz oleoso sobre papel estilo Canson — tudo isso com Sofia e Eloá sempre em comunicação. Os dois mundos. O diálogo privado.

*Acompanhe uma breve fala de Sofia no vídeo produzido por Marcos Mantovani, clicando AQUI