POR MARCOS MANTOVANI
Giuliana não se intimida com os temporais da vida por uma razão muito simples: Tormenta é sua aliada. Tormenta é a cachorra que foi adotada na fronteira entre o Uruguai e o Brasil e que passou a viajar pela América Latina na garupa da bicicleta de Giuliana. Juntas, elas são a versão atualizada do clássico Thelma & Louise.
Com o tempo, conforme a filhote Tormenta crescia, Giuliana precisou repensar o tamanho do compartimento da garupa da bicicleta. Ela pesquisou opções maiores e isso foi resolvido logo. Hoje, com o espaço aumentado na garupa, Tormenta recebe mais vento no rosto, mais liberdade no pelo e mais paisagens nos olhos de tempestade.
“O nome dela era pra ser Menta”, Giuliana diz em português, com sotaque espanhol e articulação latino-americana. “Menta virou Tormenta porque ela não parava quieta”, explica e acaricia a nuca da cachorra, que por um momento está quieta e dá sinais de preguiça, contradizendo seu nome, o que é compreensível, já que o sol agora das 11h50 é um chamado à moleza.
Amóz, contabilidade, circo
Antes de Tormenta, Giuliana Perlo viveu outros capítulos em sua vida. Seu pai se chamava Amóz, e Amóz faleceu quando Giu ainda era bem menina. Dele, que tinha uma empresa e por isso viajava muito, ela pegou o gosto pela matemática e pelas viagens — inclinações que, mais tarde, levaram Giu a ingressar no curso de ciências contábeis da Universidade de Tucumán, norte da Argentina.
A ideia abstrata na cabeça de Giu era que, como contadora, ela teria chances de viajar a trabalho, conhecer lugares, experimentar-se em cidades diferentes. Foram necessários três anos na graduação de Ciências Contábeis para que a ideia dela perdesse a abstração e ganhasse uma clareza desestimulante. O que fazer? Largar tudo? Giu largou tudo.
E entrou no Circo Social de San Miguel de Tucumán, uma escola circense gratuita que ofertava três aulas por semana de acrobacias, contorcionismo, monociclo, performances em duo e malabares com claves. Ali, durante a vivência de um ano, Giu compreendeu duas coisas. 1) A arte dava uma surra no curso de Ciências Contábeis. 2) Era o momento de deixar a Argentina para trás.
Luciano, fisgada, mãe
Giu condensou a vida num mochilão e caminhou até a casa do seu amigo Luciano, que a esperava com seu próprio mochilão. Eles se olharam de cima a baixo, acharam graça da versão viajante de cada um e se deram um abraço de urso que na legenda dizia: vai dar tudo certo.
Deu tudo certo por 10 meses, na Bolívia, no Peru, no Equador e na Colômbia — Giu e Luciano fazendo acrobacias duo em semáforos, praças e parques. Até que uma percepção fora de hora deu uma fisgada no íntimo de Giu e a fez sentir que, antes de seguir sua viagem pela América Latina, ela precisava retornar à Argentina para fechar um ciclo que não havia sido fechado corretamente, algo a ver com seus três irmãos e sua mãe.
Giu retornou, abriu a porta de casa e olhou para a mãe (Paola) de uma maneira mais adulta, mais autorresolvida. A mãe queria que ela retomasse a faculdade de Ciências Contábeis e se encaixasse na vida cotidiana de San Miguel de Tucumán. Giu sorriu com ternura e disse que a amava, mas que na verdade estava ali para lhe informar que seu futuro seria mesmo a arte de rua, a estrada e a solidão dessa escolha.
Uruguai, Brasil, ciclos
Em um ano e meio de Uruguai, Giu se mexeu: foi a convenções de circo, alargou-se como contorcionista, aprendeu a arte circular do bambolê. E conviveu com algumas artistas de rua que lhe ensinaram na prática os abecês do feminismo e da sobrevivência. Com duas delas, Macarena e Cande, Giu começou a viajar de bicicleta dentro do Uruguai.
Só que essas sequências de viagens em trio se esgotaram, cumpriram seu papel. Giu resolveu dar atenção a um apelo que lhe requeria mais emancipação e individualidade. Assim, na fronteira entre o Uruguai e o Brasil, ela adotou a filhote vira-lata Tormenta e a encaixou na garupa da sua bicicleta, seguindo pelo Brasil adentro na companhia só da cachorra, já tendo hoje intercalado períodos em mais de 10 cidades gaúchas e catarinenses, Thelma & Louise em busca de um fim alternativo para o clássico de 1991.
Mas esse fim ainda terá de esperar. No instante da escrita deste texto, Giu e Tormenta estão transitoriamente em Caxias do Sul, parando na casa de amigos recém-feitos e ganhando a vida com quatro bambolês (dois rosas-choque e dois amarelos) nos semáforos mais ou menos indiferentes e às vezes machistas do bairro São Pelegrino.
Amanhã, ou depois de amanhã, quando o sol iniciar outro ciclo diário, elas também sentirão o gatilho de começar mais um ciclo particular em algum lugar diferente. Giu ajeitará nos alforjes da bicicleta suas roupas, seus quatro bambolês e seu livro sobre veias abertas e América Latina, e então acomodará Tormenta no compartimento da garupa, nenhuma delas precisando dar explicações a ninguém, uma argentina de 25 anos e uma cachorra, o vento, um continente.