DIÁRIO DO ISOLAMENTO
Por T. S. Marcon
SEGUNDA-FEIRA, 30 DE MARÇO,
DÉCIMO-TERCEIRO DIA
Carreatas pedem o fim da quarentena em várias cidades do país.
Mas se a autoridade máxima do país também não é a favor da quarentena, como ficamos? Acima de qualquer motivação autoritária, uma das funções de um governo é proteger as pessoas de suas próprias idiotices. Como vivemos numa coletividade, uma idiotice individual pode prejudicar um grande número de pessoas e, estamos saturados de saber, o governo sempre deve colocar o interesse público acima do privado. O problema surge quando o próprio governo comete uma idiotice individual.
Num estado mínimo, como tantos desejam aqui na Terra Brasilis, nosso rei acumula duas funções: a de rei e a de bobo da corte.
Ainda bem que o Mandeta, curandeiro do reino, é a favor da quarentena.
TERÇA-FEIRA, 31 DE MARÇO,
DÉCIMO-QUARTO DIA
Recebo uma mensagem no whats. U., meu novo chefe, informa que retornaremos ao trabalho presencial. Haverá uma escala de trabalho na prefeitura, de forma que não se acumule perigosamente muitos colegas dentro da mesma sala. A princípio, um dia da semana pra cada um. No restante dos dias, home office. Fiquei com a quarta-feira. Não haverá acesso ao público.
Acho que não comentei aqui: mudarei de setor dentro da minha própria secretaria, a de planejamento. Recebi o convite de U. e me senti prestigiado. Até então eu fazia projetos arquitetônicos e, de uns oito meses pra cá, fiscalizava obras. Agora fui convidado a atuar na área de planejamento urbano mesmo.
Tenho verdadeira fissura em projetar, mas nesse tempo aprendi que não disponho de muito talento pra fiscalização de obras; sou excessivamente compreensivo e afável com os empreiteiros; isso em si não é um defeito, mas abre um canal de cumplicidade perigoso, que pode ser interpretado por alguns deles, sobretudo pelos de mau coração, como uma licença para que nos empurrem serviços abaixo da crítica ou aditivos ao contrato.
Claro que nunca aceitei nada assim, mas às vezes há um desgaste interpessoal que contribui para o aumento do estresse, da fadiga e do desânimo. Durante uma pandemia isso fica ainda mais perigoso.
Fiscal de obra não pode mostrar muitos dentes, dizem alguns colegas mais antigos. Não é pra tanto, penso, mas acho também que já cumpri minha função como fiscal. Quando comecei a fiscalizar obras, também por convite de um colega que era meu superior, um episódio no trabalho (por enquanto não vejo motivo de comentar aqui) me carregou de culpa.
Na minha cabecinha neurótica de amante do equilíbrio cósmico, disse a mim mesmo que, aceitando ir pra fiscalização de obras, eu aplacaria essa culpa. De certa forma, funcionou. Sinto hoje que o dever foi cumprido. Mas não paro de fiscalizar imediatamente: ainda tenho três obras em andamento e a transição será gradual.
QUARTA-FEIRA, 1° DE ABRIL,
DÉCIMO-QUINTO DIA
Acordo cedo, 6 e 30 da manhã, com alguma ansiedade.
Quase não lembrava do ritual necessário, que há tempos elegi como o mais adequado à minha rotina, para executar antes de colocar os pés na rua: sentar na cama e emitir uns doze bocejos, escolher e catar a roupa que vestirei meio na penumbra pra não acordar a Juliana, dar uma colher de chá arregrada de sachê ao Zizeck (ele mia incessantemente ao ver que me dirijo à geladeira, depois continua até que a comida seja deposita no pratinho), limpar sua caixa de areia; depois tomar meu remédio da pressão, comer uma colher de chia, sentar no trono e se aliviar antes do banho quente, secar o cabelo com secador, passar cera no cabelo e desodorante nas axilas; depois me vestir, escolher os 8 ou 9 livros que levarei doentiamente comigo na pasta de couro e na sacola com a marmita, espargir perfume no cangote, dar tchau à Juliana, colocar os calçados, levar o lixo na lixeira da rua, voltar à garagem, dar partida no carro.
Na prefeitura, a sensação é que fui escalado pra trabalhar num sábado de tarde qualquer. Estou só numa sala que normalmente comporta 10 pessoas. Todos os ruídos são perceptíveis. O vento assobia nas microfendas da esquadria. Agora terei sol na minha mesa. Ele já se insinua lá fora, sorrateiro a beijar a granitina da fachada; é uma dádiva, antes eu ficava ao sul, sombrio e úmido. Estou agora na porção norte do edifício, o grande pavilhão erigido nos anos 50 para abrigar a Festa da Uva, e quando me ergo tenho à frente uma vista do largo Vinicius Ribeiro, do pórtico de acesso, da grande massa verde, ao fundo, do Parque dos Macaquinhos.
Passo no super. A lista de compras é longa. As pessoas se olham assustadas. Há cada vez mais usuários de máscaras. Tenho de providenciar a minha, penso. Finalmente me aproximo do caixa, há adesivos distanciadores colados ao piso. As atendentes usam grandes viseiras com a parte superior vermelha, uma espécie de máscara de solda transparente.
“CPF na nota, senhor Tiago?”
“Sim, sim, por favor. Meu CPF impresso na nota. Sim!
No decadente mundo capitalista contemporâneo, ter um CPF é uma das garantias de que existo.
Tiago Sozo Marcon é escritor, arquiteto e funcionário público municipal
E-mail: tsozomarcon@gmail.com