Por Marcos Mantovani
Conforme o evangelho dos escultores, um dia antes de criar Adão, Deus pediu a Ale Amorin opiniões sobre a confecção do crânio: formato, tamanho, textura. Simplesmente porque crânios são uma das obsessões do caxiense de 49 anos. Mas uma obsessão escultórica que chegou aos poucos, respeitando a hierarquia das influências — antes de esculpir, Ale Amorin ouviu música, cortou cabelo, desenhou e tatuou muito.
Essas referências de arte criaram nele um repertório alargado. Criaram um modo de olhar. Um modo de reproduzir de maneira artística o anatômico, o orgânico, o núcleo que constitui o que de fato somos. E o que somos é carne, é sangue, é nervo, é osso — assim como também somos decomposição gradativa, crânios revestidos de cabelo e pele. Esse entendimento Ale Amorin tem há tempos.
tattoo, seletividade
Em 1991, Ale Amorin saiu em busca de estudos e de instrumentos para tattoo. “Fui fazendo o melhor que eu podia, apesar das limitações daqui.” Até que, em 1992, ele descobriu que nos EUA e na Europa havia convenções de tatuadores, locais onde seria possível interagir com os seus heróis: Paul Booth, Filip Leu, Guy Aitchison e Tin Tin. Nascia ali um intercâmbio de metodologias, que em certa época fez com que o caxiense tivesse a maior distribuidora de materiais tatuatórios do Brasil.
Ele explica que, em termos de estilo, há vários tipos de tatuadores. “Uma marca registrada minha era o trabalho preto e sombra, além do orgânico”, diz, a voz num tom ameno, sossegado. O seu estúdio de tattoo em Caxias funcionou por cerca de quinze anos. Aos poucos, houve a troca da quantidade pelo tatuar seletivo, fazendo com que o ofício se tornasse para ele uma espécie de ritual esporádico, restringido só a amigos e fãs. “Ainda conservo um estúdio privado em casa.”
Kiss, estética
A banda norte-americana Kiss tem um papel central na vida de Ale Amorin. “Já fui a uns vinte shows dos caras.” Tanto que, durante os anos em que tatuou de maneira constante, ele costumava deixar um CD do Kiss tocando ao fundo em volume nem sempre tão baixo. Para gerar atmosfera. Para gerar uma conexão com o mundo hipervisual da banda, uma hipervisualidade que fascinou Ale Amorin desde os catorze anos.
“Mas o que eu curti primeiro foi o som deles. O gosto pela estética visual veio depois.” E essa estética influenciou bastante as esculturas dele, já que a banda Kiss é conhecida pelas maquiagens efusivas, pelo uso cênico do fogo, pelas representações de jorramento de sangue nos shows. “De uma forma meio romântica, isso tudo acaba aparecendo nas minhas esculturas, está presente nos crânios e nas decomposições.”
raízes, fascínios
Ale Amorin conta que, embora tenha começado a esculpir tarde, a atração pela escultura é anterior a tudo. Durante a infância, por exemplo, quando ia ao centro de Caxias, ele sempre queria fazer uma parada numa casa de artigos para Umbanda. “Na entrada havia uma preta e um preto-velho sentados, os quais, em minha mente infantil, me impunham um respeito que eu não tinha nem por pessoas de verdade.”
As primeiras esculturas dele surgiram em 2006, mas foi só em 2011 que Ale Amorin iniciou sua carreira como escultor profissional. Sua escola escultórica é a cerâmica. “O timing da argila, as formas de queima, os revestimentos e todo o processo envolvido me fascinavam.” E fascinados também ficam os entregadores de matéria-prima quando entram na sala de crânios, para soltar os sacos de talco industrial. “As reações são engraçadas.”
fronteiras, God of Thunder
Em 2018, Ale Amorin publicou, via Financiarte, o livro imagético Esculturas (Editora São Miguel, 258 páginas), cujo miolo apresenta as peças que o escultor criou entre 2012 e 2018. Peças que foram vendidas para todo o Brasil, assim como para os EUA, Portugal, França, Holanda, Suíça, países da Ásia e também aqui da América Latina. São fronteiras que se expandem.
Como se expande a música God of Thunder, do Kiss, enquanto o escultor aquece os dedos para refinar um de seus trabalhos — talvez um retrabalho no crânio de Adão, o crânio pioneiro, a obra que deixou inclusive Deus em dúvida, o crânio matriz em cuja mandíbula de cerâmica ainda é possível ver uma etiqueta meio apagada pelo fogo bíblico: Ale Amorin, bairro Lourdes, Caxias do Sul-RS.