Caxias do Sul 15/04/2025

O epílogo do construtor de catedrais literárias

Escritor Mario Vargas Llosa parte aos 89 anos legando um inextinguível amor pela relevância das “mentiras ficcionais”
Produzido por Marcos Fernando Kirst, 14/04/2025 às 10:02:50
O epílogo do construtor de catedrais literárias
Escritor peruano recebeu o Nobel de Literatura no ano de 2010
Foto: Emmanuel Dunand/AFP

POR MARCOS FERNANDO KIRST

Penso que muito mais do que sua morte, a entristecer o planeta literário, são a vida e a catedral cultural erigida pelo nobelado escritor peruano Mario Vargas Llosa ao longo de seus 89 anos vividos (e encerrados neste domingo, 13 de abril) que merecem ser notícia perene. Isso porque é o legado construído pelos artistas do quilate dele que permanece e se reveste de camadas sucessivas de relevância ao ritmo do passar do tempo, esse nem sempre justo destruidor e construidor de famas.

A fama de Vargas Llosa, que o acompanha desde muito cedo em sua profícua carreira literária, e que seguramente permanecerá por muito tempo ainda após este epílogo de sua existência física, sempre foi e segue sendo justa. Porque ele foi e seguirá sendo um grande escritor. Sabia exercer o ofício da escrita ficcional como poucos. Como aqueles poucos e aquelas poucas que sabemos, em nosso íntimo, que são os e as que realmente, que de fato, que de verdade, que sem mentira, que sem leniências e sem compadrios, sabem mesmo escrever. São poucos. São poucas. Mario Vargas Llosa integra esse seleto time. Felizmente, nos deixa longevo e passando a acalentadora sensação de que aproveitou bem as décadas vividas esgrimindo com generosidade a arte que tão bem sabia manusear, haja vista a vasta obra que produziu, em especial, no reino da literatura ficcional.

Confesso que dele li pouco. “Conversa na Catedral”, um de seus muitos clássicos, foi o único romance de Llosa que li até agora, mas me apresso em me redimir avisando que na minha prateleira-dos-livros-a-ler figuram, ansiosos, “A Casa Verde”, “Tia Julia e o Escrevinhador” e “Cinco Esquinas”. Serão todos lidos, a seu tempo. Detecto também ali a ausência de “A Guerra do Fim do Mundo”, que preciso lembrar de adquirir e ler, sabendo de antemão que este será provavelmente o livro dele que mais apreciarei. Conheço-me. Conheço-o.

Mas não li dele só aquela obra já citada. Li também, e é sobre esta que quero discorrer um pouco, o volume de ensaios instigante e criativamente intitulado “A Verdade das Mentiras”, um saboroso livro sobre livros e sobre o prazer e a relevância do ato de ler ficção, que muito me impressionou. Ali Vargas Llosa elenca 35 obras literárias que marcaram o século XX e discorre sobre cada uma delas sob o prisma de sua tese, a de que “a missão do romance é mentir de maneira persuasiva, fazer passar por verdades as mentiras”. As ditas “mentiras”, neste caso, referem-se às criações literárias nascidas na imaginação dos autores que, ao ganharem vida por meio da leitura, oferecem maneiras de compreender melhor a vida e de, assim, melhor vivê-la. Essa é a magia da literatura de ficção, é aí que reside a sua relevância humana, quando esgrimida pelas mãos dos e das grandes autores e autoras.

Ao longo do livro, em que o autor vai conversando amigavelmente com o leitor a quem sugere e indica as leituras, ficamos sabendo que o cineasta italiano Federico Fellini (1920 - 1993) era “um grande mentiroso”. Mentiroso no sentido de inventor de histórias não reais, no sentido de criador de verdades fictícias. Fellini fazia isso “porque a realidade não lhe bastava”. No Prólogo, Llosa amplia a reflexão, afirmando que “a vida real, a vida verdadeira, nunca foi nem será suficiente para satisfazer os desejos humanos”. Conforme analisa, graças à ficção “somos mais e somos outros, sem deixar de ser nós mesmos”.

Mario Vargas Llosa deixou a vida mas não deixou e nem deixará de ser ele mesmo sempre que alguma das páginas escritas por ele ganhar vida aos olhos e na alma de algum leitor. Empreendeu sua vida real a tecer preciosas “mentiras ficcionais” que nos ajudam a compreender melhor o que e quem somos, por que agimos como agimos, de que essência é constituída essa complexa humanidade a que pertencemos. A nós que seguimos ainda por aqui, cabe sempre agradecer a esses e a essas grandes por esses presentes que nos oferecem em forma de livros, a abarrotarem nossas estantes e a apaziguarem nossa insaciável necessidade por mais vida.