Por José Clemente Pozenato
Impossível, nesta época de fuga de contágios, não vir à tona da memória a obra imortal de Giovanni Boccaccio, o Decamerone, que na tradução para o português se chama O Decamerão. Ela teve tanta força na literatura italiana que foi apelidada de “Comédia Humana”, para colocá-la no mesmo pedestal da “Divina Comédia” de Dante Alighieri.
Começo com uma sinopse: durante a peste negra que grassou em Florença em 1348, sete moças e três rapazes decidem ir para uma casa de campo para fugir do contágio, durante duas semanas. (Os mesmos quatorze dias que a OMS recomenda como isolamento na atual pandemia...). Para suportar a reclusão, decidem que cada um deles vai contar uma história por dia, durante dez dias. Cada dia, uma “rainha” ou um “rei”, escolhido de comum acordo, determina o tema das histórias. Total: uma centena de contos numa única obra!
O título é uma invenção de Boccaccio, dando forma italiana a duas palavras gregas que significam “dez dias”: deka émera. Hoje se fala em quarentena – isto é, quarenta dias. Mas quarentena já existia desde a Grécia antiga, com o nome de tessaracontas (isso só para lembrar que estudei grego também, como o Boccaccio!).
Pois está aí uma boa sugestão para a gente enfrentar estes dias de medo e tédio: contar histórias. Ou então ler as que foram escritas em períodos parecidos com este, com todo mundo enfiado dentro de casa. O Decamerão do Boccaccio pode ser também visto num filme dos irmãos Taviani, que tem o título, nem um pouco surpreendente, de “Maravilhoso Boccaccio”. O filme não conta as cem histórias originais. Resume-se a uma por dia. Mas é um ótimo aperitivo, ainda mais saindo da câmera dos Taviani.
Outra história que ajuda a sentir a fundo o desastre econômico que se desenha a cada dia pode ser encontrada em outra obra prima: O Obelisco Negro, do alemão Erich Maria Remarque. O romance se passa numa cidadezinha alemã, na década de 1920, quando se prenunciava a quebra das bolsas no mundo inteiro. Uma cena que não esqueço é esta: dois amigos chegam num restaurante, pedem a comida e pagam a conta de imediato, porque se esperassem para pagar no fim do almoço custaria o dobro. Noutra cena, o dono de um escritório está sem fósforos e acende no fogão uma nota de dez marcos para acender o charuto. Um charuto brasileiro, por sinal...
Não está aí uma boa sugestão? Mergulhar no imaginário faz bem.
José Clemente Pozenato é escritor, autor de “O Quatrilho”, entre outras obras.
e-mail: pozenato@terra.com.br