Por MARCOS FERNANDO KIRST
Antônio Maria (de nome completo Antônio Maria Araújo de Morais, nascido em 1921 e morrido cedo, em 1964), compunha aquele panteão dourado dos exímios cronistas brasileiros que edificaram a mansão da crônica nacional usando como pilares um tripé de extremos: extremo talento, extrema sensibilidade, extrema singeleza no descrever a essência do mundo pescada fundo na superfície das aparentes banalidades do cotidiano.
A ele se somam os mestres como Rubem Braga, Leon Eliachar, João do Rio, João Bergmann, Sérgio Porto, Rachel de Queiróz, Jimmy Rodrigues e tantos outros.
Nascido em Pernambuco, decidiu sediar seu talento na então capital federal do Brasil, o Rio de Janeiro, a partir de 1948, abrindo espaço na mídia da época com seu talento múltiplo. Também era compositor e radialista, tendo o dissabor de narrar o gol final do Uruguai que mortificou os corações brasileiros na derrota do escrete nacional na final da Copa do Mundo de 1950.
Em suas crônicas, deslindava as gentes e os costumes da cidade do Rio (em especial Copacabana, o bairro que amava), filtro por meio do qual desnudava todas as gentes e todos os cantos do mundo. Morreu de infarto, aos 43, dentro da madrugada, na calçada defronte a uma boate em Copacabana. Levou consigo a inspiração que ali deve ter buscado para mais uma crônica.
Para lembrá-lo, nada melhor que lê-lo, com a devida nostalgia daquelas suas crônicas.
A que segue foi originalmente publicada em 1959.
Amanhecer em Copacabana
(Por Antônio Maria)
Amanhece, em Copacabana, e estamos todos cansados. Todos, no mesmo banco de praia. Todos, que somos eu, meus olhos, meus braços e minhas pernas, meu pensamento e minha vontade. O coração, se não está vazio, sobra lugar que não acaba mais. Ah, que coisa insuportável, a lucidez das pessoas fatigadas! Mil vezes a obscuridade dos que amam, dos que cegam de ciúmes, dos que sentem falta e saudade. Nós somos um imenso vácuo, que o pensamento ocupa friamente. E, isso, no amanhecer de Copacabana.
As pessoas e as coisas começaram a movimentar-se. A moça feia, com o seu caniche de olhos ternos. O homem de roupão, que desce à praia e faz ginástica sueca. O bêbado, que vem caminhando com um esparadrapo na boca e a lapela suja de sangue. Automóveis, com oficiais do Exército Nacional, a caminho da batalha. Ônibus colegiais e, lá dentro, os nossos filhos, com cara de sono. O banhista gordo, de pernas brancas, vai ao mar cedinho, porque as pessoas da manhã são poucas e enfrentam, sem receios, o seu aspecto. Um automóvel deixou uma mulher à porta do prédio de apartamentos — pelo estado em que se encontra a maquillage, andou fazendo o que não devia. Os ruídos crescem e se misturam. Bondes, lotações, lambretas e, do mar, que se vinha escutando algum rumor, não se tem o que ouvir.
Enerva-me o tom de ironia que não consigo evitar nestas anotações. Em vezes outras, quando aqui estive, no lugar destas censuras, achei sempre que tudo estava lindo e não descobri os receios do homem gordo, que vem à praia de manhã cedinho. E Copacabana é a mesma. Nós é que estamos burríssimos aqui, neste banco de praia. Nós é que estamos velhíssimos, à beira-mar. Nós é que estamos sem ressonância para a beleza e perdemos o poder de descobrir o lado interessante de cada banalidade. Um homem assim não tem direito ao amanhecer de sua cidade. Deve levantar-se do banco de praia e ir-se embora, para não entediar os outros, com a descabida má-vontade dos seus ares.