Por MARCOS FERNANDO KIRST
Conheci a envergadura do carisma e do talento cênico de Tarcísio Meira no alvorecer da década de 1970 do século passado, período em que eu recém me havia despedido do kit básico de sobrevivência humana composto por fraldas, chupeta e mamadeira e começava a palmilhar o mundo com um pouco mais de autonomia (motora e sensorial).
Estão carimbadas em minha memória remota e primitiva os nomes de novelas por ele protagonizadas na época, como “Irmãos Coragem” (de 1970, quando eu tinha quatro anos), “Cavalo de Aço” (de 1973, quando eu já me alfabetizava) e “O Semideus” (também de 1973). Eram tempos em que a “novela das oito”, da Rede Globo (a única emissora que nosso aparelho de televisão Telefunken com imagem em preto e branco sintonizava na Ijuí daquelas remotices), era exibida realmente às 20h, depois do “Jornal Nacional”, apresentado por Cid Moreira e Sérgio Chapelin.
Não me foi permitido assistir em tempo real a nenhuma dessas produções de Janete Clair e Walter Negrão, porque fui criança em uma era em que crianças obedeciam às regras determinadas pelos pais e uma delas consistia em ir para a cama por volta de 21h. Sem discussão. Sem choro. Sem negociação para tentar ficar mais um pouco jogando videogame ou no celular porque simplesmente não existiam videogames e nem celulares.
O sinal para sair da frente da tevê ou encerrar qualquer atividade e rumar para a cama era dado por um oportuno comercial televisivo dos Cobertores Parahyba, exibido sempre no mesmo horário noturno: um desenho animado em que três crianças empijamadas apagavam velas e iam se deitar, sob o jingle que cantava: “Já é hora de dormir/ Não espere mamãe mandar/ Um bom sono pra você/ E um alegre despertar” (confira o comercial AQUI). Reflexo condicionado: era só escutarmos o jingle que minha irmã e eu já começávamos a bocejar, assim como milhões de crianças brasileiras da década de 1970.
Era no despertar e ao longo dos dias que eu ficava sabendo do andamento da tramas telenovelísticas capturando fiapos das conversas entre os adultos, que assistiam e comentavam as agruras de João Coragem apaixonado por Lara (interpretada por Glória Menezes); da dupla Rodrigo e Miranda (Tarcísio e Glória, o casal nacional mais legal) de “Cavalo de Aço” e de Hugo Leonardo em “O Semideus”.
Hugo Leonardo, aliás, era um nome que capturava meu imaginário devido à sonoridade e eu brincava de agente secreto sob essa denominação. Vestia um casaco bege de camurça, calçava sapatos mocassim, surripiava os óculos escuros e um chapéu de meu pai e ficava me escondendo atrás das portas e me esgueirando pelos corredores da casa na Rua dos Viajantes, mãos enfiadas nos bolsos, ar compenetrado, fingindo ser Hugo Leonardo, o agente secreto, em ação, roubando o nome do personagem de Tarcísio e lhe conferindo outra identidade.
Mais tarde, nunca fui grande apreciador das telenovelas, não tanto por questão de gosto estético quanto por questão de tempo, mesmo. Mas acompanhei em tempo real as exibições das atuações marcantes e dramáticas de Tarcísio em minisséries televisivas como “O Tempo e o Vento” (de 1985), em que ele configurou a persona do Capitão Rodrigo e “Grande Sertão: Veredas” (também de 1985), na qual imortalizou o jagunço Hermógenes. Pois é... a televisão, naquela época, levava à telinha, em superproduções, as narrativas ficcionais dos grandes escritores brasileiros. Sim, sim, verdade, acredite!
E para desdizer o mito de que eu não assistia a novelas, eu o fiz, com muito gosto, nos finais da tarde em 2002, quando acompanhei, capítulo por capítulo, “O Beijo do Vampiro”, de Antônio Calmon, uma leve e criativa comédia vampiresca encabeçada por Tarcísio (o vampiro Bóris Vladescu) e Flávia Alessandra (a portadora do pescoço preferido do vampiro). Ali fui surpreendido e encantado pela verve cômica de Tarcísio, que ele desempenhava com tanto talento e maestria quanto os papéis de galã ou de vilão, peculiaridade que o país novelístico todo já conhecia muito bem desde seu papel como o atrapalhado detetive Aristênio Catanduva, na novela “Araponga”, de 1990.
Tarcísio chegando ao Festival de Cinema de Gramado em 1987
Por fim, fui surpreendido por sua participação também (e sempre) marcante no remake da novela “Saramandaia”, exibida em 2013 na tentativa frustrada da Globo de retomar as “novelas das dez” (da noite), mas às onze. A remodelagem da novela ícone de 1976 ficou à altura da qualidade da original, com grande elenco, grandes desempenhos, grande direção, e assisti todinha.
Tarcísio interpretou o coronel Tibério Villar, cansado patriarca da família, que, de tanto ficar sentado em uma cadeira na sala do casarão, seus pés se transformaram em raízes que se encravam no assoalho até a terra nas fundações da moradia ("Saramandaia” é uma genial obra de realismo fantástico, como bem lembramos, na qual transitam figuras como um homem com asas de anjo e que voa, outro que expele formigas pelo nariz, uma mulher obesa que explode de tanto comer, um gentil e culto professor que à noite se transforma em um lascivo lobisomem e outras esquisitices). Tarcísio interpretou seu personagem sentado a novela inteira. Mesmo sem sair do lugar, seu talento se expandia por toda a tela, invadindo todos os lares nele sintonizados.
Pude ver o gigante da teledramaturgia nacional ao vivo no Festival de Cinema de Gramado de 1987, em sua 15ª edição, que fui cobrir na condição de repórter representante da Rádio Universidade da Universidade Federal de Santa Maria. Ainda estudante de Jornalismo naquela instituição, eu e duas colegas tivemos a brilhante ideia de contatarmos os diretores da Rádio UFSM para que providenciassem credenciais de imprensa para nós, o que nos permitiu acessar as exibições de todos os filmes, os debates com os diretores e atores e as cerimônias de abertura e de premiação do Festival, em troca do envio de entrevistas e depoimentos exclusivos, via telefone, à programação da rádio. As despesas de transporte, alimentação e hospedagem, claro, correram por conta de nossos próprios bolsos, projeto no qual investi 93% dos recursos que eu tinha acumulados em uma caderneta de poupança.
Entre outros artistas que me deslumbraram por ver ao vivo e de pertinho (em especial Bruna Lombardi e Lúcia Verissimo), fiquei perplexo com o carisma irradiado pelo Tarcísio, sempre que sua figura adentrava os ambientes. Foi assim já na descida do ônibus especial que o trouxe do aeroporto de Porto Alegre ao Palácio dos Festivais (momento que flagrei com minha máquina fotográfica, em uma das 36 poses que me permitia empilhar o filme Kodak que eu adquirira nas vésperas).
Flagrei também seu encontro entusiasmado, no saguão, com o cineasta Walter Hugo Khouri (1929 - 2003), diretor do filme “Eu”, estrelado por Tarcísio e exibido naquele ano. Entusiasmado com aquele clima festivamente glamouroso, me arrisquei a desentocar o “repórter foca” que me habitava as vocações e protagonizei uma entrevista catastrófica e desastrada com o cineasta Khouri, que queria me fulminar com os olhos, mas isso já é papo para outra oportunidade.
O ator encontra o diretor Walter Hugo Khouri, do filme "Eu"
O fato é que guardo comigo, como relíquias, as fotos exclusivas que tirei daqueles ícones da dramaturgia brasileira que flagrei transitando entre os mortais naquele ano de 1987 em Gramado, Tarcísio figurando entre as estrelas mais brilhantes da constelação.
Como acontece com as fotos antigas que perenizamos ainda em filme e papel, diferentemente daquelas registradas com nossos modernos artefatos virtuais (que se perdem nas entranhas de bites de nossos aparelhinhos), consegui localizar com facilidade o álbum (físico) onde elas se encontram, metido em uma gaveta na sala. Compartilho aqui algumas delas. E compartilho com todos os brasileiros apreciadores da arte da dramaturgia a comoção pela perda desse nosso portentoso e insubstituível talento.
Lúcia Verissimo, no auge da fama
Bruna Lombardi, azulando o Festival
FOTOS: Marcos Fernando Kirst