Por MARCOS FERNANDO KIRST
And in the end... E no final, John e George odiavam Paul; Paul desdenhava George e se ressentia de John; ninguém odiava Ringo, que apenas assistia impotente ao titânico choque de egos entre os outros três, que resultava no naufrágio da maior banda de rock de todos os tempos, rumando desgovernada ao encontro do iceberg de sua inevitável dissolução.
O clima de fim de festa que se estabelecia entre o quarteto de Liverpool no final da década de 1960, reforçando no anticlímax a sensação de que o sonho tinha realmente acabado, pode ser conferido e confirmado por quem assiste ao documentário “Let it Be”, lançado em maio de 1970. O filme chegava aos cinemas do mundo exatamente um mês depois do anúncio oficial da separação da banda, funcionando como obra póstuma juntamente com o disco de mesmo nome.
Clima descontraído no estúdio
Dali em diante, nunca mais haveria reunião dos Beatles, e tudo seria história. Uma história de fama, sucesso, muito talento, fileira de hits memoráveis, que chegava ao fim de forma melancólica, conforme escancaravam as tomadas ao longo dos 81 minutos do filme que mostrava a desintegração do relacionamento entre os membros da banda tentando gravar as faixas do projeto inicialmente batizado de “Get Back”.
De posse das declaradas 28 horas de gravações, feitas entre 2 e 30 de janeiro de 1969, o diretor Michael Lindsay-Hoog produziu um verdadeiro testamento da atmosfera insuportável que imperava entre o quarteto nos estúdios, temperada pelo mau humor de George Harrison, pela resignação ausente de Ringo Starr, pelo desinteresse de John Lennon (voltado basicamente às atenções à presença de Yoko Ono nas gravações, imposta por ele goela abaixo aos demais) e pela conduta autoritária de Paul McCartney, tentando desesperadamente manter em funcionamento as engrenagens de uma banda que já se havia esgotado.
Ringo Starr e John Lennon, nas gravações
O canto do cisne, redentor, foi o epifânico concerto no topo do telhado da gravadora Apple, em 30 de janeiro de 1969, quando a magia Beatle ressurge entre os quatro por alguns minutos, restabelecendo entre eles a parceria, a cumplicidade, o gatilho para seus quatro talentos agirem em sintonia na criação de música de melhor qualidade. Feito isso, largadas as baquetas e desligados os plugues dos amplificadores, cada Beatle retornou para o seu galho e só voltariam a se reunir em 22 de fevereiro daquele ano, para começar as gravações que resultariam no derradeiro álbum da banda, “Abbey Road”, lançado em setembro de 1969. O projeto “Let It Be” seria engavetado e só voltaria à tona com o lançamento posterior do disco (em maio de 1970) e do filme, a cuja estreia nos cinemas nenhum Beatle compareceu.
George Harrison, conferindo o trabalho na mesa de som
SÓ QUE NÃO ERA NADA DISSO
Mas agora, passados 50 anos, o diretor de cinema Peter Jackson, famoso por ter dirigido “O Senhor dos Anéis”, teve acesso a todo o material gravado por seu colega cineasta Michael Lindsay-Hoog quando registrava as sessões de “Let It Be”, e está preparando uma nova edição que revoluciona a forma de avaliação do clima entre os quatro Beatles, nos meses finais da banda. Ao que tudo indica, a coisa não foi tão grave e tão pesada assim, e a atmosfera nas gravações era permeada também por alegria, descontração, cumplicidade, improvisos e envolvimento.
Ringo, o mágico das baquetas
Ao contrário do que se pensava, há muito mais material à disposição para trabalhar do que se sabia até então: Jackson está vasculhando 56 horas de gravações (simplesmente o dobro do que se imaginava), e a nova edição de “Let It Be”, agora rebatizado de “Get Back”, que era o título original do projeto, tem previsão de chegar aos cinemas em agosto de 2021.
Yoko Ono e Linda Eastman, conferindo o trabalho dos maridos
Para deleite dos fãs, o diretor disponibilizou uma prévia contendo cinco minutos de material inédito, nos quais se pode ver John e Paul se divertindo ao cantar “Two of Us” com os dentes cerrados; descontração geral do quarteto na mesa de som; Linda Eastman (esposa de Paul) e Yoko Ono (esposa de John) conversando animadamente nos bastidores; a esposa de Ringo, Maureen Cox, curtindo o som da banda junto aos técnicos; Ringo fazendo palhaçadas na bateria; Paul e George simulando uma briga de mentirinha; John lendo em voz alta sarcasticamente notícias de jornal a respeito da banda, aos demais colegas; John fazendo um de seus típicos trocadilhos, rebatizando a banda como “The Bottles” (“Os Garrafas”); a presença encantadora de filhos dos Beatles nos estúdios e, claro, tomadas inéditas do show no telhado e outras preciosidades.
O tecladista Billy Preston, convidado especial nas sessões
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O que se depreende disso tudo é que, assim como famílias e/ou grupos de amigos que se amam, a relação entre os Beatles era composta por intensa camaradagem, amor, disputas, parceria, brigas, reconciliações, perdão. “Let It Be” enfoca primordialmente os momentos sombrios daquele período; “Get Back” resgata a magia que funcionou como combustível para os Beatles serem os Beatles.
Paul McCartney e uma de suas filhas, agitando o ambiente
Aconselha-se amenizar a ansiedade da espera reescutando todos os álbuns da banda, é claro.