Caxias do Sul 27/11/2024

“Não percamos tempo temendo os cenários apocalípticos criados em nossa cabeça”

A receita de longevidade da mais antiga vinícola em atividade no Brasil, com 110 anos
Produzido por Silvana Toazza, 20/10/2020 às 15:32:14
“Não percamos tempo temendo os cenários apocalípticos criados em nossa cabeça”
Maurício Salton é diretor-presidente da Salton e representante da quarta geração da família
Foto: Eduardo Benini

De que forma alcançar a longevidade e manter-se atual neste mercado em efervescência? A Vinícola Salton, de Bento Gonçalves, sabe muito bem conjugar experiência com modernidade.

Ao completar 110 anos de história em 2020, a empresa não se deixou abalar pela pandemia que respingou profundamente no filão de enoturismo. Em rota inversa à apatia do mercado, a Salton avança a goles fartos e acelera o movimento de expansão, com crescimento previsto de 10% a 12% no faturamento neste ano. Há 15 anos, lidera o mercado nacional de espumantes.

Os detalhes desse case emblemático da indústria vitivinícola nacional (e serrana) são esmiuçados a seguir na entrevista exclusiva concedida por Maurício Salton, diretor-presidente da Salton e representante da quarta geração da família, à seção Conversa Afiada do site:

Qual a receita para uma empresa chegar aos 110 anos de história?
Sem dúvida, a experiência adquirida ao longo de um século e uma década nos servem de referência para que hoje consigamos responder aos desafios com base nessa bagagem. A profissionalização da gestão, tarefa assumida ainda pela terceira geração da família, também foi fundamental para nossa continuidade. Mais especificamente a partir dos anos 2010, o conhecimento especializado passou a ser agregado ao negócio e se iniciou o movimento de governança corporativa e planejamento estratégico, junto a importantes investimentos orientados ao futuro da companhia. Nosso atual modelo de gestão, além de profissional, é bastante claro e dinâmico, apoiado na experiência adquirida pelas gerações anteriores, dando segurança e robustez à nossa estrutura, o que acaba sendo um importante diferencial frente aos desafios do mercado em que estamos inseridos. A capacidade de transformação também é chave para um negócio sustentável: enxergar oportunidades em momentos de dificuldades e reinventar-se ao invés de relutar à mudança de estratégias que foram bem-sucedidas no passado.

Qual a estrutura atual em termos de unidades fabris, produção e funcionários?
No RS, contamos com uma unidade vinícola, onde são elaborados espumantes, vinhos e bebidas não alcoólicas em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha. Em Santana do Livramento, na Campanha Gaúcha, temos uma área de 635 hectares com 124 hectares de vinhedos próprios cultivados, com as mais modernas técnicas de manejo e colheita mecanizada, além de uma unidade onde ocorre a primeira etapa da vinificação. No Estado de São Paulo, a unidade de destilados fica localizada em Jarinu, enquanto que, na capital paulista, a Enoteca Família Salton oferece experiências relacionadas ao mundo do vinho, com os grandes rótulos da vinícola, em ambientes exclusivos. Atualmente, cerca de 400 pessoas fazem parte de nossa equipe própria em todas as unidades.

De que forma a crise da Covid-19 impactou nos negócios?
O início da pandemia coincidiu com o final da safra da uva e nossos temores se dividiram entre como processar toda a matéria-prima, que só ocorre nesse período do ano, com a queda súbita nas receitas, por se tratar de um evento inédito e imprevisível. Adotamos medidas de segurança, antes ainda da obrigatoriedade, justamente para preservar as atividades essenciais de processamento dos frutos, de modo que nossas equipes, mesmo reduzidas, pudessem trabalhar com toda a proteção possível. E o comportamento do consumidor surpreendentemente acabou favorecendo bastante todo o setor vinícola. Aqui, na Salton, registramos aumento de 20% no primeiro semestre, em relação ao mesmo período do ano passado, mas um aumento importante foi apurado durante os meses de maio a julho. E aliado ao fato de estarmos preparados para atender essa demanda, o câmbio também favoreceu a competitividade dos vinhos brasileiros em relação aos importados, incentivando ainda que o consumidor explorasse e se surpreendesse positivamente com a qualidade dos rótulos nacionais com preços atraentes.

Foi preciso se reinventar para superar esse momento ou o setor está entre os menos atingidos?
Algumas estratégias foram essenciais para garantir o bom andamento dos negócios. A primeira, naturalmente, garantindo prontamente a segurança e tranquilidade de todos os nossos colaboradores. A sazonalidade inerente ao nosso mercado, que possui ciclos operacionais e financeiros específicos, motivou uma política mais conservadora em termos de gastos e investimentos. Trabalhamos ainda na manutenção da política de preços e, apesar do aumento dos custos e da demanda, priorizamos a capitalização dos estoques e preservamos a competitividade de nossos rótulos em gôndola. Fortalecemos parcerias com nossos clientes, responsáveis pela distribuição e comercialização de nossos produtos ao consumidor final, tanto no mercado interno quanto externo. Ainda renegociamos contratos de trabalho com nossos fornecedores, de modo a compartilhar um plano de trabalho que também trouxesse certa previsibilidade e segurança para os mesmos.

O vinho foi a bebida da crise da Covid-19. Perceberam o aumento nas vendas?
Sim, a empresa cresceu 20% no primeiro semestre de 2020, na comercialização de seus produtos, comparando com o mesmo período do ano passado. No bimestre de maio e junho, as vendas atingiram um pico de 40% de aumento. Esse número foi puxado pelos vinhos tranquilos, já que os espumantes tiveram uma ligeira queda no período, decorrente, especialmente, da mudança de temperatura e da falta de produto na pré-safra. Entendemos que as restrições de circulação trouxeram sim novos hábitos de consumo para a nossa categoria de produtos.

O turismo sofreu grande impacto. Como enxergas o futuro deste segmento?
O turismo foi uma das áreas mais afetadas. Cautela e criatividade são essenciais para a retomada das atividades na área. Desde março, as experiências na Salton estavam paralisadas por conta da pandemia, mas, durante esses meses, a vinícola adotou diversas medidas de segurança, como a comercialização dos vinhos e espumantes pelo sistema de takeaway, com encomendas por telefone, WhatsApp ou e-mail. Agora, em setembro, com um novo modelo de atendimento, a vinícola reabriu as portas novamente ao público, com alternativas seguras tanto para os visitantes quanto para a nossa equipe. O tour foi adaptado, sendo possível conhecer as principais atrações da vinícola, com degustação de grandes rótulos, exclusivamente com agendamento, e atendimento para grupos de, no máximo, 6 pessoas. Passamos a oferecer, ainda, uma experiência enogastronômica, com tábuas de frios e, neste mês de outubro, está sendo inaugurado um novo espaço, junto ao roteiro de visitação: uma galeria dedicada à exposição de peças de nosso acervo histórico, resgatando parte da evolução da Salton, a vinícola mais antiga em atividade no Brasil.

Qual a previsão de crescimento em 2020?
Em 2019, ao todo, tivemos 36,8 milhões de garrafas vendidas e um crescimento de 17,5% no faturamento em relação ao ano anterior. Para o fechamento de 2020, nossa previsão é de um aumento de 10% a 12% no faturamento da vinícola, este podendo ser positivamente impactado pelo volume surpreendente das exportações.

Quais as inovações previstas para o futuro. Alguma novidade a caminho?
Além das adaptações nas experiências enoturísticas, já disponíveis, estamos lançando uma nova linha de espumantes premium, inspirada no já reconhecido e premiado rótulo Salton Ouro. A partir de outubro, além do Salton Ouro Brut, estará disponível o novo Salton Ouro Brut Rosé e até o final do ano, o Salton Ouro Extra-brut completará a nova linha. São espumantes cuja expressão vem de um cuidadoso amadurecimento sobre leveduras após a segunda fermentação, o que reforça a sua complexidade. Em meio à celebração dos 110 anos da vinícola, lançaremos, em novembro, a edição comemorativa do vinho Salton Septimum, safra de 2018. Elaborado com 7 variedades de uvas, com fermentação e maturação em barricas de carvalho, trata-se de um vinho tinto de edição limitada e garrafas numeradas. O primeiro lote dessa exclusividade, com apenas 110 garrafas, já está disponível nas lojas junto à vinícola, em Bento Gonçalves, na Enoteca Família Salton, em São Paulo e através da loja virtual (www.salton.com.br).

Quais os principais mercados atualmente?
Hoje a Salton exporta para mais de 25 países, mas o mercado nacional responde pela grande fatia de nossas receitas. Os Estados Unidos despontam como um mercado bem importante para a empresa. Desde 2017, contamos com uma equipe in loco e as exportações crescem continuamente. Vale destacar importantes parcerias firmadas com grandes redes como Total Wine and More e ABC Liquors. Recentemente fechamos outra parceria, com um grupo responsável por 60% das vendas de bebida alcoólica na Colômbia, intensificando o mercado com nossos vizinhos, na América do Sul. Com os novos contratos fechados, a expectativa é encerrar o ano superando a meta de 1 milhão de garrafas de espumante exportadas, número 20% superior a 2019.

De onde surgiu a ideia do documentário e comente um pouco sobre ele?
Atingir 110 anos é um marco. Afinal, são poucas empresas que chegam a essa idade, ainda mais familiares. A tradição é um dos nossos valores, em equilíbrio com a transformação. Precisamos nos apoiar no trabalho das gerações que nos antecederam e cujos exemplos servem de referência em diversos momentos. Pensando justamente em contar um século e uma década de história, pensamos em um vídeo narrado pelas pessoas que a viveram. O processo de produção, entre a captação, edição e finalização do documentário, levou quase 1 ano, e ficamos muito satisfeitos com o resultado. Afinal, a obra audiovisual de 30 minutos conta uma história real, narrada por pessoas reais, através de suas percepções, experiências e lembranças.

Como uma empresa centenária, a Salton já deve ter vivenciado outras crises. Essa é a maior delas?
Sem dúvida, vivemos diversos momentos desafiadores em 110 anos. Passamos por duas guerras mundiais que abalaram o mundo, além de graves crises político-econômicas no sempre desafiador cenário brasileiro. Internamente, passamos por conflitos de interesse, que talvez seja um dos maiores desafios enfrentados por empresas familiares, e que, para nós, deixou profundas marcas. Percebendo a necessidade de dividir o pessoal do profissional, a geração anterior à nossa trabalhou fortemente na profissionalização da companhia, fortalecendo assim as bases para o nosso futuro. Nos reinventamos e prosseguimos superando cada uma dessas crises e, a pandemia, provavelmente, seja a maior crise do gênero, de nível global, que enfrentamos.

Que mensagem deixaria a outros empresários nesse momento?
Hoje lidamos com um novo e preocupante cenário e mais uma vez a incerteza, o medo e a insegurança cruza o caminho de todos. E é nesse momento que a falta de clareza, infelizmente, corrói nossas engrenagens. Precisamos ser fortes e confiar em nossas competências e em nossas equipes. Sejamos ainda criativos, diligentes e perseverantes, olhando o copo meio cheio e buscando ser a nossa melhor versão sempre, sob todas as circunstâncias. Não percamos tempo temendo os cenários apocalípticos criados em nossa cabeça, pois as chances de estarmos errados são muito grandes. Este é um dos maiores legados da Família Salton: a capacidade de seguir em frente enquanto muitos desistiriam. Nós viemos desta escola, confiamos em nossa empresa, em nossa trajetória e acima de tudo confiamos em nossas equipes.