POR MARCOS FERNANDO KIRST
Engana-se quem pensa que o Destino era mais poderoso do que a força de viver e seguir labutando incansavelmente em busca da “cucagna” (a “fortuna”, em dialeto talian), manifesta no personagem literário mais popular da região de colonização italiana no Rio Grande do Sul, o “sgamberlon” (atrapalhado) Nanetto Pipetta. Ele está de volta em um pacote de mais de 250 hilariantes aventuras (todas escritas em talian) distribuídas em dois volumes produzidos pelo jornalista caxiense Marcelino Carlos Dezen.
Marcelino Carlos Dezen, autor de mais de 200 aventuras de Nanetto Pipetta (FOTO de Francis Cerutti)
As restrições impostas pela pandemia do coronavírus impediram o autor de organizar uma seção de lançamento à altura do feito, porém, a avidez e a ansiedade (plenamente justificadas e compreensíveis) dos leitores podem ir sendo saciadas com a aquisição das obras (são dois volumes independentes entre si) na revistaria Banca Rio Branco, situada na avenida e bairro de mesmo nome, ao lado da Igreja dos Capuchinhos. “Braùre de Nanetto Pipetta” (“Proezas de Nanetto Pipetta”) e “La Cucagna de Nanetto Pipetta” (“A Fortuna de Nanetto Pipetta”) custam R$ 25,00 cada, porém, levando os dois, o combo sai por apenas R$ 40,00.
É pouco “fiorin” (“dinheiro”) para muita “distrassion”. O jornalista Marcelino Carlos Dezen, nascido em Forqueta, interior de Caxias do Sul, trabalhou durante muitos anos na redação do jornal “Correio Riograndense”, periódico editado em Caxias desde 1909, em cujas páginas, na década de 1920, surgiu Nanetto Pipetta, da imaginação do frade capuchinho Aquiles Bernardi, o Frei Paulino.
Apaixonado pelas estripulias do personagem desde a infância, quando escutava as narrativas lidas pelos pais, tios e avós (de quem também herdou a paixão pela cultura dos imigrantes italianos e o domínio do dialeto), assinantes assíduos do jornal, Marcelino teve a condução da mão do Destino a “jogar-lhe” o personagem no colo décadas depois, quando já formado em jornalismo pela UCS e trabalhando no mesmo periódico.
Marcelino acabou integrando um time populoso de escritores, jornalistas e leitores que, durante quase duas décadas (de 2000 até 2017), se revezaram na tarefa saborosa de dar sequência às aventuras do personagem nas páginas do “Correio Riograndense”, herdando uma tarefa habilmente desenvolvida por seus precursores “clássicos”: o criador Aquiles Bernardi e o sucessor “oficial” Pedro Parenti, cujas trajetórias estão detalhadas logo adiante.
No volume intitulado “Braùre de Nanetto Pipetta”, com capa em preto e branco, Marcelino compila todas as 159 aventuras que publicou sob sua autoria no “Correio Riograndense”, de 2006 até 8 de fevereiro de 2017, data da última edição impressa do jornal. Já no volume “La Cucagna de Nanetto Pipetta”, com capa colorida, figura uma centena exata de aventuras inéditas, uma vez que Marcelino, inconformado com o fechamento do jornal e ainda obcecado pelo personagem, seguiu escrevendo e produzindo em casa. As gravuras que ilustram os dois livros são de autoria de Derli Dutra, residente em São José do Ouro (RS).
"Braúre de Nanetto Pipetta" reúne textos já publicados
"La Cucagna de Nanetto Pipetta" traz aventuras inéditas
“As histórias continuam florescendo na minha cabeça, é como se eu conversasse todos os dias com o Nanetto e ele me narrasse as suas estripulias”, revela o escritor, por telefone, de sua residência em Forqueta, em entrevista exclusiva concedida ao site. Marcelino segue trabalhando e já tem outro punhado de textos prontos (mais de 60), que configurarão novo volume assim que a marca dos 100 textos for novamente atingida.
Ou seja, nem as águas turbulentas do Rio das Antas, onde o criador Aquiles Bernardi tentou afogar sua criatura em 1926, imaginando colocar um fim à saga, nem o triste falecimento de um jornal tradicional, são capazes de cercear a imensa vontade de viver que pulsa nesse personagem de papel e se alimenta da imaginação de tantos leitores, sejam eles serranos ou não, compreendam eles ou não o talian. Nanetto Pipetta está de volta, para a alegria de todos.
OSSERVASSION: todas as expressões em talian utilizadas nesta reportagem foram retiradas de duas fontes: “Gramática e Vocabulário do Dialeto Italiano Rio-Grandense”, de autoria de Alberto Victor Stawinski, publicada como Apêndice no livro “Vita e Stória de Nanetto Pipetta”, de Aquiles Bernardi; e “Dicionário Português-Talian”, de Honório Tonial.
“BRAÚRE” DE NANETTO NAS PÁGINAS
Traçar uma imagem verdadeira, por meio do humor, do espírito dos imigrantes italianos que vieram para a América no processo de colonização iniciado em 1875 na Serra Gaúcha, e retratar um quadro real das dificuldades aqui encontradas por eles, por meio da sátira, foi o sopro que motivou e inspirou o frei capuchinho Aquiles Bernardi (1891 – 1973), também conhecido como Frei Paulino, a criar e escrever as aventuras de Nanetto Pipetta.
Filho de imigrantes e nascido na Caxias colonial, Bernardi ingressou no Seminário Capuchinho de Alfredo Chaves (hoje Veranópolis) aos 13 anos de idade e seguiu carreira religiosa. Envolveu-se diretamente na direção e edição do “Stafetta Riograndense” (“Correio Riograndense”), jornal fundado em 1909, que promoveu a integração dos imigrantes urbanos e dos colonos do meio rural, dedicando amplo espaço em suas páginas a textos produzidos no dialeto talian.
Aquiles Bernardi, o criador de Nanetto Pipetta
Bernardi publicou suas aventuras de Nanetto Pipetta no periódico entre os anos de 1924 e 1926, com o intuito declarado de “traçar a verdadeira imagem da América e aumentar as assinaturas do jornal”, metas que afirma terem sido plenamente atingidas, em depoimento na orelha do livro que reúne seus textos, “Vita e Stória de Nanetto Pipetta, Nassuo in Itália e Vegnudo in Mérica par Catar la Cucagna” (“Vida e História de Nanetto Pipetta, Nascido na Itália e Vindo à América para Fazer a Fortuna”).
Por alguma razão ainda não totalmente decifrada (cansaço, falta de tempo, convicção de missão cumprida, restrições à língua e dialetos italianos advindas do período entre-guerras, quando a Itália fascista de Benito Mussolini atravancava as boas relações dos imigrantes em terras brasileiras), Bernardi decidiu colocar um fim à saga de Nanetto nas páginas do jornal e providencialmente o afoga no Rio das Antas (“Rio Desanta”, conforme grafado no texto derradeiro).
Livro reúne as histórias originais escritas por Aquiles Bernardi
“Aiuto, son perso!” (“socorro, estou perdido!”), são as palavras finais de Nanetto, enquanto engole as águas que deveriam, se dependesse só das intenções do Frei Paulino, calar para sempre o intrépido imigrante ficcional. Não adiantou. A reação dos leitores, inconformados com a tragédia, foi tamanha que Frei Paulino decidiu, 40 anos depois, na década de 1960, retomar o cenário literário no qual transitava seu Nanetto, mas agora com novas aventuras protagonizadas por Nino, o irmão de Nanetto. Ele vem de Veneza à Serra Gaúcha junto com a mãe, a fim de tomarem posse das propriedades deixadas pelo desafortunado Nanetto, e, ali, acabam encontrando a “cucagna”.
Esse material foi publicado no “Correio Riograndense” de 1965 até 1967, quando Bernardi decidiu de novo abandonar a saga e se dedicar a publicar as aventuras de “Robinson Crusoé” em italiano gramatical (personagem do escritor inglês Daniel Defoe, que viveu entre 1660 a 1731) e “A Vida de Jesus Narrada às Crianças”. As aventuras de Nino, tanto as publicadas no jornal quanto as inéditas deixadas por Bernardi, foram reunidas em uma obra póstuma à morte do Frei Paulino, sob o título “Stòria de Nino, Fradello de Nanetto Pipetta”.
"Stòria de Nino", o irmão de Nanetto Pipetta
No ano de 1999, o advogado e ator Pedro Parenti (1951 - 2000) decide assumir a tarefa de dar sequência à saga de Nanetto Pipetta nas páginas do jornal “Correio Riograndense”, embalado pelo fato de ter encarnado de forma excepcional o personagem nos palcos a partir da peça “Nanetto Pipetta” (leia abaixo), montada pelo grupo teatral caxiense “Míseri Coloni”, do qual era integrante e fundador. Parenti escreve aventuras inéditas de Nanetto, resgatando-o miraculosamente com vida da queda (até então) fatal nas águas do Rio das Antes, à qual o submetera seu criador, Aquiles Bernardi, décadas antes.
Nanetto retorna, sob a inspiração de Pedro Parenti
Aliás, isso de tentar assassinar personagem de sucesso já deu errado antes com figuras exponenciais da literatura universal, como o escocês Conan Doyle (1859 – 1930), criador do detetive Sherlock Holmes. Mesmo após o estrondoso sucesso de suas novelas policiais, publicadas na imprensa londrina, Doyle decide matar seu personagem em 1893 (com a desculpa de poder se dedicar a “trabalhos mais importantes”), fazendo-o despencar nas Cataratas de Reichenbach, na Suíça, após uma luta mortal contra seu arqui-inimigo, o Professor Moriarty (Sherlock, igual a Nanetto, morre, portanto, afogado em águas turbulentas). A indignação dos leitores foi tamanha que Doyle precisou também reviver miraculosamente o personagem, dez anos depois, em 1903.
A retomada do personagem Nanetto Pipetta sofreu uma interrupção abrupta com a morte inesperada de Pedro Parenti em 3 de novembro de 2000, em decorrência de um derrame cerebral. A partir de fevereiro de 2001, o “Correio Riograndense” anunciava um novo retorno de Nanetto Pipetta às páginas do jornal, agora tendo suas aventuras narradas em forma de revezamento por diversos autores.
Entre eles, figuraram, até o fechamento do jornal, em 2017, nomes como Mário Gardelin, Rafael Baldissera, Eduardo Grigolo, Antônio Baggio, Sergio Ângelo Grando, Silvino Santin, Luiz Bavaresco, Marcelino Carlos Dezen e outros. Algumas dessas séries autorais também foram publicadas em livro.
“BRAÚRE” DE NANETTO NOS PALCOS
Nanetto Pipetta, o personagem, ganhou vida, gestual, tom de voz, estatura, face e trejeitos na encarnação protagonizada pelo ator Pedro Parenti, a partir da montagem da peça de mesmo nome pelo grupo teatral caxiense “Míseri Coloni” (“Colonos Miseráveis”), em 1987. A peça foi a segunda levada aos palcos pelo grupo, fundado em 1981, a partir de uma reunião de amigos, descendentes de imigrantes italianos, que tinham como meta comum promover o resgate e a valorização do dialeto talian por meio da arte teatral (todas as peças montadas até hoje pelo grupo são faladas em dialeto).
Pedro Parenti encarnando Nanetto (D) (FOTO Divulgação)
“Quatro, Cinque Storie dei Nostri Imigranti” (“Quatro, Cinco Histórias de Nossos Imigrantes”) foi a primeira montagem, na verdade, uma colagem de algumas histórias, em cartaz pela região a partir de 1982. Em 1987, o grupo passa a encenar, com estrondoso sucesso, a montagem de “Nanetto Pipeta”, com Parenti interpretando o carismático personagem principal. A peça ficou em cartaz por dez anos, até 1997, totalizando 158 apresentações, oito delas na Itália, em turnê do grupo por aquele país.
O personagem é retomado pelo Míseri Coloni em 2018, com a estreia do espetáculo “Mitincanto - As Aventuras e Desventuras de Nanetto Pipetta”, agora com Nanetto sendo vivido no palco pelo ator chileno Cristian Beltrán, sob direção cênica do renomado Camilo De Lélis. Vários mitos e lendas integrantes do folclore dos imigrantes italianos são repassados na peça, tendo como protagonista o inesquecível Nanetto Pipetta, em uma montagem com texto falado em talian e português.
"Mitincanto", nova montagem do grupo Míseri Coloni, leva de novo o personagem ao palco (FOTO de Aldo Toniazzo)
“BRAÚRE” DE NANETTO NA MEMÓRIA
Caxias do Sul reverencia um de seus personagens mais significativos de diversas maneiras, além das páginas dos jornais e livros e da presença nos palcos teatrais. Em 2006, uma estátua do personagem foi inaugurada no Parque Mário Bernardino Ramos, área municipal que comporta os Pavilhões da Festa da Uva e a Réplica de Caxias do Sul Antiga. O monumento, de três metros de altura, inspirado na construção cênica da figura de Nanetto pelo ator Pedro Parenti, está instalado em frente à Réplica, tendo sido produzido pelo artista plástico Roberto Mugnol.
Estátua de Nanetto Pipetta junto à Réplica, nos Pavilhões da Festa da Uva (FOTO de Luciane Modena)
No tradicional corso alegórico (desfile) que integra a agenda de atividades fixas das edições da Festa da Uva, em Caxias do Sul, também foi aberto espaço para homenagear o personagem e seu criador. Um dos carros alegóricos da edição de 2016 enfocou o frei Aquiles Bernardi e sua criação, Nanetto Pipetta, encantando o público presente aos desfiles daquele ano.
DEPOIMENTO: “BRAÚRE” DE NANETTO AQUI EM CASA
Conheci mais a fundo as características de Nanetto Pipetta a partir do projeto de resgate da trajetória e memória do grupo teatral Míseri Coloni, durante os trabalhos de pesquisas e entrevistas que desenvolvi junto à trupe para a produção do livro “Míseri Coloni, 30 Anos de Palco”, escrito por mim e lançado em 2011. Não tive a oportunidade de assistir às montagens da peça, até por ser eu também um moderno imigrante que aportou em Caxias em 1992, vindo de terras longínquas gaúchas e descendente de alemães.
Não falo, portanto, o dialeto talian, apesar de entender algumas expressões e algumas palavras, devido ao convívio com os familiares de minha esposa (ela, sim, descendente de imigrantes italianos) e a partir da relação que estabeleci com a cidade e sua encantadora história ao longo dos quase 28 anos que aqui já vivo. Interessado que sou pelo resgate histórico dessa região, foi natural para mim ir adquirindo as obras de Bernardi e Parenti, que contêm as histórias hoje clássicas de Nanetto Pipetta.
Não raro, pego um dos exemplares e evoco, dentro de nosso apartamento, a figura de Nanetto e suas estripulias, sacando da estante algum desses exemplares, coleção agora abrilhantada pela presença dos dois volumes recém lançados, de Marcelino Carlos Dezen. Como cada um tem lá seus talentos, que só o toque do dedo de Deus explica, fui agraciado com o talento de pronunciar corretamente línguas que não domino. Sendo assim, pego às vezes os livros e me ponho a ler em voz alta as “braùre” do Nanetto, para a minha esposa, que se diverte aos cântaros.
Autor desta reportagem, se divertindo com Nanetto, mesmo sem entender patavinas de talian (FOTO de Silvana Toazza)
Vou lendo em talian, sem entender patavinas do que digo, e ela se torce de rir no sofá da sala, tropicando no pufe, batendo nas cadeiras. Se ela está no quarto, frente ao espelho, se arrumando para sair, leio em talian e ela borra a maquiagem de tanto rir, e eu ali, com cara de samambaia, sem compreender uma linha inteira sequer. Se invado o banheiro quando ela está no banho, lendo o talian que pronuncio certinho sem entender meia vírgula, ela deixa cair o sabonete e espalha xampu pelo box todo, de tanto rir.
Já aconteceu de a sogra, o sogro, a esposa, os cunhados, em Nova Bassano, reunirem tios e tias que moram nas cercanias para escutarem eu protagonizar a leitura em talian das diabruras de Nanetto Pipetta, ao vivo, a cores e sob o semblante abobalhado de minha cara de zonzo enquanto a turma de debruça rindo sobre a caixa de lenha, chacoalhando as polentas brustoladas que tentam devorar enquanto escutam e gargalham. E eu ali, claro, livro aberto na mão e cara de sabugo de milho verde, entendendo “niente” do que sai da minha boca.
Felizmente, minha esposa, condoída de meu desinforme, consegue me traduzir as passagens enquanto seca as lágrimas oriundas do riso gostoso e renovador da alma que Nanetto Pipetta provoca em todos aqueles que toca com sua alegria imortal. “Grazie mille”, Bernardi que criou o personagem e todos os demais que seguem nos brindando com a manutenção dessa icônica chama de vida.