Por MARILIA FROSI GALVÃO
Dezembro. Mês que promete emoções fortes. Lembranças. Presenças. Ausências. Impossível não fazer uma contabilidade emotiva. E de leituras feitas.
Primeiro dia, pois. Domingo. Dia perfeito, ensolarado, azulado. Uma brisa morna me toca por inteiro. Algumas folhas voejam nela, por ela - a brisa. Dirijo-me à Prefeitura Municipal. Lá, o ponto de partida para uma caminhada de apoiadores do Grupo Mulheres do Brasil. Para dizer um sonoro Não. Não à violência praticada contra mulheres e meninas. Mulheres no front.
Sigo pela Alfredo – que também é a rua em que moro. Passo pelo Parque dos Macaquinhos – e cumprimento todas pessoas que passam por mim. Inclusive os bichinhos de estimação. Algumas me ignoram, outras nem ouvem, de tão carrancudas e ensimesmadas. As pessoas. Não sei, levo a mal, não. Pena. Pondero que possa haver, nessas mentes, um rancor, algo indefinível, talvez, um gérmen de guerra – de intolerância –, de desamor. Felizmente, há as que correspondem ao cumprimento com simpatia e outras se surpreendem. Falo pessoas. Não estamos habituados à gentileza, à leveza.
União no mesmo front da boa batalha
(Foto: Michele Kempf)
Como mulher, por natureza, tenho em mim o senso maternal e cuidados para com o outro. Abrigo em mim, todas mulheres – antepassadas e ainda por nascer – “pintadas” com diferentes cores – idades e crenças. Todas. Vejo-me em todas – assim como elas me abrigam, igualmente.
Tenho restrições com as palavras – empoderamento – sororidade – resiliência – feminismo – ou seja – palavras esvaziadas de sentido por terem extrapolado o conceito de forma negativa. Quanto a essa última, feminismo... Defender os direitos é legal, todavia, tachar os homens como inimigos – não podemos generalizar essa questão. Alguns, muitos, são maravilhosos – provedores e protetores.
Gosto das palavras fraternidade – compaixão – companheirismo – solidariedade – compreensão – consciência – esperança – liberdade – igualdade - coragem – compromisso – lealdade...
Assim, ao pensar no que transmitem essas palavras, fica expresso e comprovado o apoio dado pela mulher ao homem – desprezando aquele clichê: “atrás de um grande homem há uma grande mulher”. Mentira – melhor corrigir para “ao lado ou à frente ou à retaguarda de um grande homem há...”
Em relação a esse dito, vem-me à mente o fato de que as mulheres sempre, sempre, estiveram ao lado dos homens, inclusive nas guerras. A história humana é marcada por conflitos – raríssimos foram os anos nos quais nenhuma guerra aconteceu no planeta. E, nos dias de hoje, penso que seja tão raso, tão injusto o fato de tomar partido em guerras sem pensar nos horrores que mães e seus filhos estão sofrendo: mulheres israelenses – palestinas – ucranianas – africanas - iranianas... parece... parece que estamos por um fio, de uma Terceira Guerra Mundial. Ou já “nela” estejamos, porque guerras isoladas em diferentes regiões do mundo estão se fundindo (como o foi na Segunda Guerra Mundial). E... a resposta pode ser nuclear.
Percebo que é um tema pesado. Guerra. Ainda mais em tempo de Natal. Mas neste momento, após essas ponderações, chego à questão intencionada, uma leitura que me impactou: “A guerra não tem rosto de mulher”, da autora nascida na Ucrânia, em 1948, jornalista e escritora Svetlana Aleksiévitch – Prêmio Nobel de Literatura – 2015.
Da “orelha do livro”: “A autora dá voz a franco-atiradoras, voluntárias, garotas que pilotavam tanques, enfermeiras de hospitais de campanha – enfim, mulheres muito jovens que ouviram o chamado da Pátria e foram combater as tropas nazistas de Adolf Hitler. Quase um milhão de mulheres lutou nas fileiras do Exército Vermelho durante a Segunda Guerra. O que aconteceu? Como elas se transformaram em guerreiras? Sentiam medo? Como era o aprendizado diário da morte?"
Então, Svetlana ouviu essas mulheres. Suas histórias. Suas vozes. A sujeira e o frio. A fome e a violência sexual. A angústia. A onipresença da morte. Foram bravas as soldadas soviéticas. Mas sem perder a feminilidade, a ternura... apesar de... A história de cada uma pode ser insuportável para nós. Ainda assim, o livro é apaixonante, de um modo específico e singular. É importante esse conhecimento, pois, se pensarmos que nós estamos a salvo, estamos sempre por um fio metafórico: o fio da navalha.
Para um alívio temporário, meus leitores já sabem... gosto de reticências... uso-as muito em meus textos – silêncios e pausas para que, em suas inteligências, deem vazão aos seus pensamentos...
Na juventude, não apreciava histórias de guerra, queria mais um rock and roll e filmes açucarados – com final feliz. Porém, foi com a leitura de bons livros que fui amadurecendo. Hoje, procuro entender o que é uma guerra. A vida. A morte. Viver é enfrentar pequenas guerras, pois cada dia é uma batalha.
Essa obra de Svetlana conta episódios reais de bravura feminina. Ela entrevistou, sofreu junto e registrou histórias de centenas de mulheres que estiveram no front. Mulheres no front.
Livro de autora nobelada enfoca a atuação das mulheres na guerra
(Foto: Marilia Frosi Galvão)
Com lágrimas nos olhos, interrompi várias vezes a leitura. As histórias e experiências são pungentes. Não há adjetivos nem verbos suficientes para definir o quanto é nefasta essa “atividade humana”. Houve violência contra mulheres e meninas.
Houve e há violência contra mulheres e meninas. Com guerra ou sem guerra... não existe justificativa. É abominável.
Pois,
Ler a obra – “A guerra não tem rosto de mulher” e participar da caminhada das mulheres no primeiro domingo de dezembro foi o gatilho para que, por este texto, pudesse compartilhar essas reflexões com meus leitores. E, com orgulho, dizer que, neste “front” realizado aqui em Caxias do Sul, fizeram-se presentes, em expressivo número, homens – homens de verdade – ao lado, à frente, e na retaguarda das mulheres. Ouvi de um deles – poderíamos iniciar um movimento só de homens em defesa das mulheres!!!!!
Para finalizar e constar...
Transcrevo uma mínima parte de um dos depoimentos à Svetlana Aleksiévitch, que é apresentado no livro das páginas 381 até 390:
“Ah, meu bem...
Passei a noite toda recordando, puxando pela memória...
...Sabe o que pensávamos na guerra? Sonhávamos: “Bom, rapazes, se sairmos vivos... Como serão felizes as pessoas depois da guerra! Como será feliz, como será bonita a vida. Essas pessoas que tanto sofreram vão ter pena umas das outras. Vão amar. Serão outras pessoas. Não tínhamos dúvidas. Nem um tiquinho.
Meu bem... As pessoas se odeiam tanto quanto antes. Matam de novo. Isso para mim é o mais incompreensível... E quem são? Nós... Somos nós...
Meu bem... Não pode existir um coração para odiar e outro para amar. O ser humano só tem um, e eu sempre pensava em como salvar meu coração.
Depois da guerra, passei muito tempo com medo do céu, até de levantar a cabeça para o céu. Tinha medo de ver terra arada. E as gralhas já estavam passando por ela tranquilamente. Os pássaros logo se esqueceram da guerra.”
Dezembro. Mês que promete emoções fortes. Lembranças. Presenças. Ausências. Impossível não fazer uma contabilidade emotiva. E de leituras feitas...
Enquanto isso...
...a brisa morna me toca por inteiro...
...e as folhas voejam... é tempo de nozes e de Jesus...
Marilia Frosi Galvão é professora, escritora e cronista, colaboradora deste Portal de notícias. Tem dois livros publicados: "Fagulhas" e "Tudo é Momento".