POR MARCOS MANTOVANI
Em vez de santos, no sobrenome de Micheli dos Santos deveriam morar palhaços. Micheli dos Palhaços. Até porque, em 33 anos, nenhum santo jamais intercedeu por ela, fez por ela. Na verdade, Micheli faz sozinha o seu caminho desde que era criança. A pé.
A pé, aos 7, ela percorria no interior de Barros Cassal os cinco quilômetros que existiam entre sua casa e a parada de ônibus. Isso tudo para ir à escola. Na lama ou na poeira. Na friaca ou no mormaço. Ali, a menina não era palhaça, não palhaçava — a palhaçaria não havia surgido ainda nem na gramática nem na geografia dela.
Esses anos sem palhacices terminariam mais tarde, quando ela fosse morar em Caxias. Mas talvez o estalo fundador tenha ocorrido em Bento Gonçalves, no período em que a família de Micheli se mudou para lá — houve um dia em que a menina entrou num teatro, assistiu a uma peça e se hipnotizou com aqueles elementos tão esquisitos, as luzes, as falas, a magia.
Na plateia daquele teatro bento-gonçalvense, Micheli não sabia direito o que eram atores e atrizes. Mas ela captou que a peça era sobre dentes, dentição. Daí, numa vontade espontânea, Micheli desejou participar daquilo sendo um dente mesmo. “Ou uma cárie”, diz. Acontece que o futuro não faria dela nem dente nem cárie, mas sim uma pulga. Uma pulguita.
dramaturgia, liderzinha, salário
Em Caxias, na 8ª série da Escola Raquel Grazziotion, Micheli foi reprovada. Ela se esqueceu de dar atenção à matemática e companhia, já que naquele ano a pequena dramaturga Micheli se atarefou demais escrevendo 11 peças, que, infelizmente, não valiam pontos para que ela vencesse a 8ª série.
Apesar disso, a aluna Micheli era despachada, metida. “Liderzinha”, ela diz. Havia muita energia artística acumulada nela, o que fazia com que Micheli se mexesse, cobrasse da escola um espaço lúdico para o teatro. Tanto que, em determinada hora, a direção viu que perderia a luta e então arranjou uma aula teatral para todo mundo. Azar da matemática.
A matemática de Micheli tinha a ver com a realidade: sua família não podia pagar aulas de teatro. Assim, a pré-adolescente teve de subir de nível artístico por meio de horas e horas de autodidatismo, sem gastar. Até que um dia ela alcançou o primeiro emprego, cujo salário lhe ajudou a entrar no percurso da teatralidade. Mas não era o tipo de serviço que ela desejava.
drible, Iván, intuição
Já cursando artes visuais na UCS, Micheli descobriu os Centros Educativos da FAS, lugares em que começou a dar aulas de teatro, como estagiária. E como estagiária ela driblou a hierarquia: montou uma peça (algo que era restrito aos profes titulares) e apresentou com os alunos o seu próprio espetáculo.
Mas a virada de chave mesmo foi em Porto Alegre, numa oficina que durou uma semana, com o palhaço espanhol Iván Prado, que dirigia o “Pallasos en Rebeldia”. Micheli investiu em si mesma, fez o curso de palhaçaria e saiu de lá palhaçando a ideia de que, sim, era uma palhaça com mil palhacices, mil palhaçamentos.
Ela queria mais. Foi quando uma intuição lhe disse para levar a sério o anúncio de um retiro de palhaçaria numa chácara de Fernandópolis, em SP. Então lá se foram Micheli e o namorado (o palhaço Mika “Timbico” Marques) para uma espécie de Woodstock palhaçareiro no meio do mato, com palhacistas nacionais e estrangeiros, gente usando dia e noite roupa de circo, maquiagem colorida e alegrias revolucionárias.
desdobres
Não demorou nada para que Micheli descobrisse suas novas referências, seus novos espelhos: Rodrigo Robleño, Aziz Gual, Victor Ávalos Tomate, Chacovachi, Iryna Ivanytska, entre outros e outras ao quadrado. Mas Micheli continuava querendo mais.
Então, em 2014, nasceu a Cia Espicula, que a palhaça Pulguita (Micheli) vem tocando para a frente em Caxias do Sul, com o palhaço Timbico (Mika), os dois se virando com números circenses, oficinas, teatro e muitos palhaçalismos — uma iniciativa profissional que hoje se tornou o ganha-pão exclusivo deles.
Os ganha-pães de Micheli já foram outros. Ela foi outras. Garçonete, vendedora, caixa, secretária, professora. Funções que até tentaram, mas não conseguiram reter Micheli por muito tempo. Aliás, ela já pediu demissão duas vezes, “sem nenhum medo”, diz. Demitiu-se para poder ficar mais perto da sua palhaçalidade.
É aí que o nome Pulguita expõe um de seus possíveis significados. Como se Micheli tivesse uma pulga atrás da orelha, uma suspeita, uma desconfiança de que, ao longo dos anos futuros, a caminhada só terá um sentido real se ela estiver com seus malabares laranjas, seu nariz de tomate e seus sapatos rubro-negros tamanho extra — enormes por causa do chulezão da palhaça.
Veja o breve depoimento de Micheli – vídeo produzido por Marcos Mantovani no Instagram, clicando AQUI