Por Marcos Mantovani
É assim desde pequena: Luci olha para o céu. Na verdade, para o que está atrás do céu. Os astros. A exosfera. O infinito. Mania que teve início em Santa Lúcia do Piaí, distrito de Caxias do Sul, cujo céu noturno era sempre uma tela viva para a menina do signo de Áries. Depois da janta, nada de TV. Os cotovelos dela se apoiavam no peitoril e os olhos se erguiam desejosos, como se a vida dependesse da contemplação da noite.
Essas contemplações destoavam do irmão e das três irmãs dela. Só Luci era dada a fiscalizar estrelas. A cabeça nas nuvens como uma distinção, algo pelo qual ela passou a ser conhecida no circuito interno da família. Então não havia mais estranheza no fato de que, à noite, a menina Luci esperava a vinda de um disco voador. “Porque do plano horizontal não viriam novidades, não mesmo. Eu tinha certeza que a novidade viria do plano vertical, de cima para baixo.”
a intuição, a multiplicidade
O pai de Luci era agricultor e criava gado. E talvez não vibrasse muito com a realidade de ter quatro filhas dentro de casa — quatro filhas e só um filho. “A consciência da inutilidade ali, enquanto mulher, foi algo crescente em mim”, ela diz. Uma intuição feminista que Luci vivia em silêncio, sem forçar. Mas que transparecia no Colégio Santa Catarina. “Não faz muito que um ex-aluno me disse que lembrava de mim lá, disse que eu me destacava.”
A multiplicidade sempre fez parte da natureza de Luci. Ao longo da sua formação, ela pegou para si inúmeros verbos: pintar, desenhar, costurar (fazia os próprios vestidos nos anos 1980), cozinhar, escrever, cantar, tocar, imaginar. Só que tudo vinha em ondas, nada que capturasse Luci de vez, em definitivo. Nada que a moldasse num formato identitário fixo — a fixidez nunca teve a chance de virar uma amiga íntima dela.
a turma, a águia espectral azul
Na infância, Luci seguiu a cartilha católica, mas em seguida percebeu que a sua turma espiritual era outra. Eram os Vedas, o Hinduísmo, o Budismo — e com Buda existe um exemplo bem concreto. Uns dez anos atrás, num momento em que Luci passou a suspeitar da dinâmica casa-trabalho/trabalho-casa, ela viu de relance um Buda na calçada. “Passei por ele e não olhei pra trás, porque me dei conta que se eu virasse talvez não fosse vê-lo mais ali.”
Esse Buda (simbólico ou não, de cerâmica ou não) foi uma virada de chave para Luci. Motivação para que ela criasse um evento chamado O Caminho das Índias: sete dias de mantras, palestras, filmes e energias. E o curioso é que, graças a esse evento, de modo acidental, uma pessoa acabou apresentando a Luci uma cultura extra, cultura que também começaria a fazer parte da vida dela: a dos Maias. “Descobri que no Selo Maia eu sou uma águia espectral azul.”
Jerônimo, Zarabatana
Em 1985, Luci conheceu Jerônimo, que era o proprietário da cantina do Cursão. Apaixonaram-se, tiveram uma filha, um filho — e tiveram a ideia de criar um Café dentro do primeiro centro cultural de Caxias do Sul. Não um Café comum. Não um mero Café comercial. “É como se fosse aquela planta que nasce no meio da pedra”, Luci diz. Planta que segue vistosa há 19 anos.
O Zarabatana Café talvez seja hoje a principal peça do Centro de Cultura Ordovás. A peça com movimentos variados. A rainha do tabuleiro. Porque afinal é ali que as pessoas se olham, se estudam, conversam sobre o filme da Sala Ulysses Geremia, sobre a peça da Sala Valentim Lazzarotto e sobre os quadros da Sala de Exposições. Lugar de encontros e trocas. Lugar de Luci.
a lucidez, o limite da autorreinvenção
Se desencaixarmos a última sílaba da palavra lucidez, teremos Luci dez. Luci é dez no sentido de estar atenta a si mesma. Um estado lúcido que permite que ela afirme, por exemplo, que jamais sentiu a necessidade de ter um hobby nas horas vagas. “É como se eu fizesse parte do programa, sabe, uma pessoa que já está montada”, diz e sorri, consciente de que é uma fala que requer interpretação.
Também é importante referir que Luci mantém o cabelo branco e longo há tempos, na contramão de certa regulagem estética para mulheres que já saíram da meia-idade. É aí que mora a convicção mais singular dela, mais singular inclusive do que seguir olhando para o céu aos 62 anos: “Não sei se é bom ficar mudando tanto assim. Cabelo, identidade. A gente não pode se reinventar a toda hora, sob risco de um dia não nos reconhecermos mais”.