Caxias do Sul 24/11/2024

“Lembro de meu pai sempre trabalhando”

Em entrevista exclusiva ao portal, única filha viva de Abramo Eberle, aos 93 anos, evoca recordações da personalidade e das ações de seu pai empreendedor
Produzido por Luiz Antônio Araujo, 30/09/2022 às 17:46:01
“Lembro de meu pai sempre trabalhando”
Maria Elisa Marisa Eberle Gewehr relembra com orgulho as trajetórias do pai Abramo (no porta-retrato sobre a mesinha ) e da avó Gigia Bandera (no quadro, ao fundo)
Foto: Luiz Antônio Araujo

POR LUIZ ANTÔNIO ARAUJO

especial para o portal

Aos 93 anos, Maria Elisa Marisa Eberle Gewehr traz na memória, com um frescor de lembrança da véspera, cenas que fazem parte da história da imigração italiana e da indústria brasileira. Filha caçula do industrial Abramo Eberle, ela se recorda de um pai terno e bem-humorado, que gostava de agradar as filhas com presentes valiosos e mantinha a casa aberta para parentes e empregados. “Eu adorava meu pai. Adoro até hoje”, resume.

O fundador da Metalúrgica Abramo Eberle S.A. (Maesa) morreu em 13 de janeiro de 1945, em Caxias do Sul, mas, ao falar do pai, Marisa, como todos a tratam, é capaz de desenrolar um fio interminável de recordações em tom amoroso e sem afetação. Para a única sobrevivente dos oito filhos de Eberle e Elisa Venzon, o pai e o empresário, assim como a indústria e o espaço doméstico, estão sempre envolvidos no papel delicado das embalagens de presente.

Com porte altivo e jovial, maquiada e com o cabelo castanho liso impecável, Marisa recebe a reportagem com um aperto suave de mão em seu apartamento no bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre. Na parede da sala de estar, está um retrato a óleo da avó, Luigia Carolina Zanrosso Eberle, a Giggia Bandera (Giggia Funileira), elegante em um vestido preto. “Vejam como ela fechou a boca ao posar para o pintor. Já não tinha dentes”, observa a neta, com carinho.

Filha caçula de Abramo guarda memorabília da família em casa (Foto: Luiz Antônio Araujo)

A obra de arte é apenas a mais visível de uma extensa memorabilia dos Eberle espalhada por mesas de centro e canto, estantes e armários: porta-retratos, livros, peças de decoração. Em uma fotografia de família, Abramo e Elisa aparecem orgulhosos em meio à filharada. Com vestido branco e cabelo com franja à Louise Brooks, atriz dos primórdios de Hollywood, Marisa, com cinco ou seis anos, está sentada aos pés dos pais, no canto esquerdo.

“Ele (Abramo) trabalhou, trabalhou muito. Eu me lembro de meu pai sempre trabalhando”, diz Marisa. Suas primeiras recordações de infância são da residência que os Eberle ocupavam no quarteirão da primeira unidade da Maesa, no centro da cidade. “Tinha uma casinha de madeira mais baixinha, e nós morávamos na mais alta, de dois andares. Na mais baixinha, tinha uma escrivaninha onde ele sentava e ficava. Depois, voltava, ia e voltava”, recorda-se. A filha é incapaz de precisar a que horas o pai levantava da cama. “Sempre fui preguiçosa. Quando eu ia para o colégio, às 8h, ele já tinha saído”, diverte-se.

Testemunha ocular do nascer de um marco histórico

Na Fábrica 2 da Maesa, Marisa lembra de ter assistido à fundição do Monumento ao Imigrante (ocorrida no início da década de 1950). “Foi a coisa mais linda. O molde foi enterrado, e o bronze corria como uma água vermelha”, afirma. Ela não se recorda de quem a acompanhou na visita — talvez Júlio ou Beppin, este último também padrinho da caçula.

Acompanhando a mulher, que sofria de problemas cardíacos, a Porto Alegre, Abramo teve um acidente vascular cerebral na Capital, onde permaneceu em recuperação por algum tempo. “Ele treinou anos e anos para assinar os papéis da metalúrgica”, revela Marisa, que estudava em Porto Alegre na época, relembrando os esforços de Abramo para retomar suas atividades, enfrentando as consequências do AVC.

Marisa define-se como “muito queridinha” dos pais e irmãos. “Ele (Abramo) beijava a gente, abraçava. Tudo que era novidade ele nos dava. Eletrola ele foi o primeiro a levar para Caxias”, lembra-se.

Os dois irmãos, José, o Beppin, e Julio João, foram trabalhar muito cedo com o pai. “Começaram de baixo, aprendendo a fazer tudo que uma metalúrgica faz”, garante. Beppin foi estudar por seis anos em Hamburgo, na Alemanha, onde testemunhou a crise hiperinflacionária e a ascensão de Adolf Hitler. “O sonho dele, e isso ninguém sabe, mas eu sei, era trazer uma montadora de automóveis para o Brasil. Depois, o Juscelino trouxe”, diz a irmã.

Orgulho das origens caxienses

Ela saiu de Caxias do Sul aos 20 anos, em 1950, cinco anos depois da morte do pai. Foi acompanhar o marido médico a Catuípe, e de lá a família se instalou em Porto Alegre, anos mais tarde. Teve três filhos, um nascido em Porto Alegre, uma filha em Caxias do Sul e a outra em Catuípe. Embora fale com orgulho das origens caxienses e tenha retornado ao município muitas vezes para rever parentes e amigos, a conversa é interrompida de tempos em tempos para que possa se situar a respeito das atualidades na Serra.

Entre as mais importantes delas, a expectativa de revitalização do complexo da Maesa (Fábrica 2), cujo conjunto arquitetônico de 19 prédios tombados se encontra na fase de estudos de ocupação e viabilidade econômico-financeira por meio da adoção do modelo de Parcerias Público-Privadas (PPPs). Tanto a família quanto a comunidade regional abraçam o projeto, na esperança de que os sonhos visionários de constante transformação da comunidade, acalentados por Abramo Eberle, sigam dando frutos para toda a Serra Gaúcha.

Luiz Antônio Araujo é jornalista formado pela Universidade Federal de Santa Maria, mestre em Comunicação e Informação e professor de Jornalismo na PUCRS. É autor de "Binladenistão: um repórter brasileiro na região mais perigosa do mundo" (2009) e “12 Livros que abalaram o Rio Grande” (2015). Reside em Porto Alegre.