Por MARCOS FERNANDO KIRST
Fui cronista do jornal “Pioneiro” em dois períodos distintos. O primeiro, de 2000 a 2002, e o segundo, de 2009 a 2020. Na primeira fase, criei a fictícia cidade serrana gaúcha de Uvanova, vizinha à Tapariu criada pelo mestre regional da crônica, o saudoso Jimmy Rodrigues, e limítrofe à Vila Faconda do também saudoso mestre das metáforas, Flavio Luis Ferrarini.
Uma das primeiras alusões à pequena e acolhedora Uvanova surgiu em um Natal daquele início de milênio, quando ainda curtíamos festividades pautadas pela alegre aglomeração de pessoas. A nostalgia daqueles tempos, daquele antigo normal e daqueles textos, evocou a nostalgia desta crônica a seguir, de minha autoria:
INESQUECÍVEIS NATAIS EM UVANOVA
Por Marcos Fernando Kirst
Uvanova é uma pequena, simpática e acolhedora cidadezinha situada no meio da Serra Gaúcha, vizinha a Tapariu. Acolhe uma comunidade trabalhadora e voltada à manutenção de valores tradicionais como a família, a religião, a amizade, a hospitalidade e a vida em sociedade.
Uma bela igreja construída há décadas pelo esforço comunitário desponta no topo do morro mais alto no Centro, cercada por um jardim e uma praça junto à casa paroquial que são um convite ao cultivo da mansidão da alma. Tudo é assim, muito tranquilo na pequena e pacata Uvanova, mas essa calmaria tem sido estranhamente quebrada há dois anos justamente nas noites de Natal.
Os relatos me têm chegado de forma esparsa e fortuita, a partir do contato com colegas oriundos de Uvanova e de amigos que têm conhecidos ou parentes morando lá. Reunindo os fatos, acredito estar descobrindo um padrão que rege os acontecimentos, mas me corrijam se eu estiver equivocado.
Tudo começou no Natal do ano retrasado, durante a celebração da tradicional missa ao ar livre realizada na imensa área verde que ladeia a igreja, reunindo grande parte da comunidade uvanovense. Antes da preleção do padre, membros jovens da comunidade encenam o nascimento de Cristo.
Devidamente nascido Cristo, o programa prevê o espocar de fogos de artifício a partir de baterias de lançamento instaladas no chão nos dois extremos do palco. Terminado o foguetório, o coral, posicionado em meio ao público, começa a entoar “Noite Feliz”, funcionando como uma espécie de trilha sonora para o rápido discurso do prefeito que, em seguida, passa a palavra ao padre.
Tudo transcorria conforme o programado até o momento em que, durante a palestra do prefeito, sentiu-se o cheiro de queimado. Em poucos minutos, o fogo consumiu os quatro cinamomos centenários que ficavam nos fundos da igreja e espantou todos, sem missa, de volta para suas residências.
Poucas janelas foram abertas para presenciar a corrida dos carros de bombeiros vindos de Tapariu, chamados às pressas para apagar os resquícios do sinistro causado pela queda das fagulhas dos fogos de artifício nas árvores.
Tudo deveria ter corrido de forma perfeita para redimir a data no ano passado, mas os fogos de artifício aprontaram de novo. O mesmo cenário e a mesma programação foi planejada, mas, dessa vez, os fogos posicionados no lado esquerdo da igreja não funcionaram a contento, espalhando foguetes rasteiros pelo chão que fizeram debandar para todos os lados os tenores, contraltos, baixos e sopranos do coro, que foram aos poucos se reagrupar, chamuscados e ofegantes, do outro lado do palco, dando início a um “Noite Feliz” trêmulo e que só se tornou audível após a chegada das vozes de pelo menos metade de sua formação, entre aqueles que ainda tinham fôlego para cantar alguma coisa e que se conseguiam fazer ouvir acima do interminável choro do Menino Jesus, que ali se traumatizava, tremendo na manjedoura do presépio vivo.
Decidi que, a partir deste ano, não perderei nenhum Natal ao ar livre em Uvanova.