POR MARCOS MANTOVANI
Guadalupe nasceu de novo num dia comum, aos 13 anos. Nasceu de novo, mas decidiu manter o nome de batismo, cujo som sempre lhe agradou. Naquele dia divisor de futuro, Guadalupe chorou em privacidade e depois pediu ajuda a duas amigas, que ficaram ao seu lado na hora do vamos-ver. A decisão: contar à mãe que ele se percebia um homem trans.
Hoje, aos 15 anos, a transgeneridade de Guadalupe já é um lugar-comum dentro da família dele – família que não usa o Twitter para insultar configurações familiares diferentes da sua. O pai vive há tempos em Porto Alegre, ao passo que a mãe, Ana Paula, mora com Guadalupe em Caxias do Sul. Ana Paula foi receptiva no dia em que escutou a importante revelação do filho. E aos poucos se acostumou com o fato: sua menina cis havia se tornado um menino trans.
a biologia, a identidade
No primeiro nascimento, a biologia deu a Guadalupe um corpo de menina. A relação com esse corpo foi tranquila até a menstruação, aos 11 anos, quando de repente um alarme soou em frente ao espelho do quarto. “Alguma coisa não batia.” Com discernimento, Guadalupe olhou para si e compreendeu que o pronome “ela” não combinava mais com o que havia em seu interior, em seu âmago.
Âmago e biologia sempre foram coisas distintas. Ou seja, em frente ao espelho, a identidade de Guadalupe se impôs e disse ao corpo que os dois já não estavam caminhando no mesmo sentido. Algo havia mudado. Então, entre os 11 e os 13 anos, num processo autoinvestigatório que ocorreu grande parte em solidão, Guadalupe amadureceu para si mesmo a noção de que, sim, era um menino trans.
a estética, a ginecologia
Pessoas trans, assim como pessoas cis, podem querer ou não se submeter a procedimentos estéticos. Guadalupe sente vontade de fazer mastectomia. “Mas tenho de esperar até os 18 anos”, diz. Também diz que há nele o desejo de começar um tratamento hormonal, embora não saiba exatamente quando, devido ao valor elevado. “E se eu optar pelo SUS, vai demorar, então são coisas que ainda tenho que decidir.”
Uma necessidade: homens trans precisam ir ao ginecologista, mesmo não se sentindo à vontade com a ideia. Se pudessem, evitariam as consultas, como forma de se resguardar. Esse resguardo se justifica por causa de certa falta de jogo de cintura que pode vir à tona na ginecologia. Não é uma generalização, mas o fato é que existem ginecos e recepcionistas que ainda precisam se atualizar em relação à transgeneridade. Atualizar a abordagem e o vocabulário.
a dicotomia, o Brasil transfóbico
Como meio de sobrevivência, de defesa íntima, o adolescente Guadalupe precisou antecipar certos amadurecimentos. Teve de interpretar depressa alguns aspectos específicos do país e da cidade em que vive. É por isso que hoje, aos 15 anos, Guadalupe compreende bem que homens trans sofrem desrespeitos numa dicotomia: ou são ignorados pela sociedade ou se tornam um alvo literal.
Literalidade: a transfobia no Brasil não se satisfaz só com memes de WhatsApp, ela arregaça também ao vivo, off-line, sem constrangimento. Esse Brasil que seguidamente evoca Deus é o país que mais mata pessoas trans no mundo (dados da ANTRA). Quer dizer, se você ou um de seus conhecidos for transgênero, você precisará ter em mente que, por aqui, a expectativa de vida para pessoas trans é de 35 anos.
o estilo, as masculinidades
Guadalupe se interessa por tudo o que está em torno da dança, especialmente de danças urbanas. Gosta ainda de teatro, desenho, música (sul-coreana) e escultura. Essa mistura de interesses artísticos combina com a variação de roupas que ele costuma usar, criando seu estilo. “Às vezes pode acontecer de eu me vestir de modo meio andrógino”, diz com uma voz ágil, alegre.
Vida tem a ver com política, e política tem a ver com visões e cegueiras. Embora o setor extremado e ultraconservador da direita não queira enxergar, a verdade é que existem muitas formas de masculinidade, não apenas a masculinidade fálica. Guadalupe vive a sua, do seu jeito, com suas normas. Alguém que tem objetivos de vida. Alguém ansioso por um Brasil com menos intolerância nos lábios e mais alteridade nos olhos. Alguém.